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“ABRACADABRA” – Eu quero acreditar e vocês?

Na Idade Média e na Idade Moderna, a bruxa se tornou uma figura marcante no imaginário popular cristão. Adoradoras de Satã que voam em vassouras, possuem um livro de feitiços e produzem maldições em caldeirões borbulhantes. Esta representação consolidada pela literatura e pelo cinema obscurece as origens históricas do que se convencionou chamar de bruxaria, especialmente a intolerância religiosa contra práticas não cristãs e a repressão à sexualidade feminina. Na sétima arte, as abordagens para as bruxas não são homogêneas. Há a leitura histórica/dramática de “As bruxas de Salém” e “Häxan – A feitiçaria através dos tempos“, problematizadora dos contos de fada de “A bruxa do amor” e “Eu não sou uma feiticeira” e cômica para o arquétipo em geral em ABRACADABRA, de 1993.

(© Walt Disney Pictures / Divulgação)

De forma semelhante a “Convenção das bruxas“, “Da magia à sedução” e “A feiticeira“, “Abracadabra” explora o humor caricatural para criar uma aventura em torno dos jovens Max, Dani e Allison. Eles precisam enfrentar três bruxas do século VII que chegam ao século XX após seus espíritos serem invocados na noite de Halloween. Winnie, Sarah e Mary foram enforcadas há 300 anos, mas conseguiram retornar com o objetivo de garantir juventude e imortalidade. Ao lado dos protagonistas, há apenas um gato preto falante que pode ajudá-los.

Além de definir a comédia como gênero predominante, o diretor Kenny Ortega também estabelece uma ideia central para o desenvolvimento da narrativa. Se vivemos em tempos em que o realismo parece o ideal no cinema comercial (até histórias fantasiosas têm almejado perspectivas mais tangíveis que se abrem menos à imaginação) e cada detalhe precisaria ser justificado metodicamente, o cineasta expõe com clareza como a década de 1990 incorporava a fantasia de forma frontal. A partir de certo instante, o elemento fantástico ganha preponderância não apenas por si mesmo, mas também pelo contraste com o naturalismo expresso anteriormente. É assim que se apresenta o contexto de Max, facilmente identificável pelo público: sentir-se infeliz após mudar de cidade, ser intimidado pelos valentões do local, sentir-se atraído por uma colega de classe e ter brigas típicas com a irmã mais nova. A própria encenação acompanha a abordagem realista ao evocar outros filmes passados em cidades pequenas protagonizados por um garoto que se sente deslocado.

O trio de bruxas é responsável por evidenciar mais claramente a entrada em cena da fantasia. Quando elas retornam, o filme deixa evidente que não pretende impor traços realistas a uma trama que se apropria do sobrenatural sem encará-lo sob um viés verossímil e racional. A abertura para uma imaginação mais livre e fantasiosa já começa a dar seus primeiros sinais através da construção cômica das três vilãs, divertindo cada uma à sua maneira o espectador com caricaturas conscientes. Bette Midler cria Winnie como a líder supostamente mais malvada e ameaçadora, que se baseia muito mais no estereótipo da feiticeira má nos trejeitos e na expressão facial do que em atitudes concretas propriamente. Kathy Najimy faz de Mary o braço direito bajulador de Winnie, que tenta agradá-la e até copiar seus movimentos, porém apenas a desagrada com erros infantis. E Sarah Jessica Parker constrói Sarah como uma adolescente impulsiva, que parece ser movida por prazeres mundanos como flertes com o motorista de um ônibus e um dançarino de uma festa de Halloween.

Situar o retorno das irmãs Sanderson no início dos anos 1990 também proporciona momentos cômicos que inserem aspectos do imaginário da bruxaria no mundo real de forma incomum. É assim, por exemplo, que as três bruxas se sentem aterrorizadas por elementos prosaicos, tentam compreender situações desconhecidas a partir de códigos familiares a elas e confundem passado e presente. Winnie, Sarah e Mary se assustam com a aproximação de um carro de bombeiros, acham que o asfalto de uma estrada poderia ser um escuro lago profundo e chamam as crianças fantasiadas de diabinhos. A principal sequência capaz de retratar o tipo de humor que se cria á que faz as Sanderson considerarem um homem fantasiado de diabo o próprio mestre Satã, pois gera piadas sobre inferno e perdição fora de seu contexto original. Então, a comédia é fruto da irrupção do místico em um ambiente trivial em uma noite fundada em tradições culturais longínquas e consagradas.

O próprio desenvolvimento da narrativa reafirma o compromisso com o fantástico ao utilizar tropos narrativos do terror sob uma perspectiva leve. Max, Dani e Allison podem ser personagens convencionais realistas, embora recebam a ajuda de Thackery Binx, um jovem amaldiçoado a viver eternamente como um gato preto falante, e de um zumbi impedido de falar por ter tido a boca costurada enquanto ainda era um ser humano. Além disso, os conflitos centrais da trama se relacionam com eventos sobrenaturais ou desencadeiam novos fatos distantes de explicações racionais. Nessa chave, estão a profecia de que um virgem acenderia a vela da chama negra e traria as Sanderson de volta; os raios que Winnie solta das mãos para atacar os inimigos; as poções que são preparadas com partes de corpo humano e animal atiradas no caldeirão; os poderes mágicos que o livro de feitiços possui em sintonia com os poderes de Winnie; a ressurreição do gato Binx que havia sido atropelado anteriormente; os planos que as Sanderson têm de sugar a energia vital das crianças; e o risco que o amanhecer representa para as bruxas.

Fantasia e comédia se unem no modo como a aventura se desenvolve se desprendendo de amarras e limitações de uma abordagem realista. Em teoria, o roteiro coloca obstáculos para os protagonistas e sugere que as vilãs poderiam triunfar dentro do modelo mais clássico de narrativa hollywoodiana. No entanto, Kenny Ortega deixa muito mais explícito que os planos de Winnie, Sarah e Mary não têm chance de dar certo, chegando inclusive a se divertir com as evidências claras de que as bruxas não poderiam concretizar seus objetivos. Todos os desejos das Sanderson são comprometidos sem maiores dificuldades porque são rapidamente enganadas ou se atrapalham sozinhas. Elas acreditam que o sistema de segurança contra incêndio dispararia uma chuva da morte e que o farol de um carro seria a luz do Sol, têm as vassouras roubadas por crianças e são facilmente ludibriadas dentro da escola local.

Embora o centro imediato da narrativa esteja no embate entre os jovens e as bruxas, há ainda desdobramentos temáticos e estilísticos mais amplos. “Abracadabra” se passa em Salém, cidade estadunidense conhecida historicamente pela execução de habitantes locais por supostamente praticarem bruxaria; além disso, evoca a história das festividades do Halloween, desde suas origens como Noite de Todos os Santos em que os mortos voltariam simbolicamente por algumas horas até sua transformação em uma celebração de doces, travessuras e fantasias. Considerando tais referências, o filme retrata Salém como um lugar suspenso na dimensão do fantástico sendo algo muito diferente no Halloween e nos demais dias. A cenografia da cidade muda na Noite das Bruxas e no período anterior e posterior a ela, assim como seus moradores também traduzem a fantasia do momento. Afinal, se os habitantes não aceitam que digam que a história das Sanderson é mentira, ao mesmo tempo não acham que ela seja real. E isso somente poderia ser possível quando se escolhe acreditar na fantasia.