“ALICE E PETER: ONDE NASCEM OS SONHOS” – O sonho despropositado
Não há quem não conheça a história do garoto que não queria crescer e da garota que cai na toca de um coelho e vai parar em um lugar tão surreal que parece um sonho. Nunca foi questionado o retrospecto de Peter e Alice – quem eram seus pais, o que faziam antes das aventuras vividas etc. -, mas ALICE E PETER: ONDE NASCEM OS SONHOS apresenta uma versão dessa parte da história. Uma parte que ninguém perguntou, que ninguém nunca quis saber, mas que agora está sendo contada.
Após uma tragédia familiar, Alice e Peter tentam ajudar os pais a superar a dor. Ela ainda não foi ao País das Maravilhas e ele ainda não é Pan, mas a imaginação dos dois irmãos é frutífera o suficiente para garantir inúmeras aventuras – algumas delas, na fronteira entre o real e o imaginário, um pouco perigosas.
Despropositado: não há palavra melhor para descrever o filme. Permeada por um subtexto com potencial, a produção cria um elo familiar inexistente e desnecessário entre duas personagens literárias icônicas e o recheia com referências dos dois universos. O País das Maravilhas e a Terra do Nunca, todavia, não habitam o mesmo campo do irreal; ainda que estejam em aventuras infantojuvenis deveras fantasiosas, seus estilos são bem diferentes. Mas o problema não é esse.
“Alice e Peter” é um erro de concepção não por tornar os heróis irmãos, mas por dar-lhes um backstory dispensável e irrelevante. O brilho da obra de Lewis Carroll (“Alice no País das Maravilhas”) e J. M. Barrie (“Peter e Wendy”) está nas próprias obras e sua riqueza criativa. O longa não pode ser considerado sequer uma adaptação; é, na melhor das hipóteses, um recurso para aproveitar a fama de duas histórias e contar uma nova história. Ou seja, o resultado final seria praticamente o mesmo se Peter não fosse Pan e se Alice não conhecesse nada do País das Maravilhas.
Importante mencionar que o resultado final não seria idêntico nessa condição (excluindo o País das Maravilhas e a Terra do Nunca). Isso porque o filme é repleto de referências, tais como Sininho, Capitão Gancho, Coelho Branco, Chapeleiro Maluco, Rainha de Copas etc. Não é difícil prever que a imensa maioria dessas referências é inútil, podendo ser facilmente substituída por personagens inéditas, ou até mesmo excluída. Nem todas, porém: Wendy é uma referência alegre, mas que poderia ser solitária sem nenhum prejuízo.
A conclusão é que o roteiro de Marissa Kate Goodhill não é em nada criativo e representa uma originalidade questionável. Se é verdade que nunca se pensou em mostrar Alice e Peter como irmãos e antes de o fantástico aterrissar em suas vidas, não é menos verdade que isso serve como reciclagem barata. Seria melhor se o plot tivesse personagens completamente originais, mas reaproveitar aquelas que já se consagraram na cultura popular é uma maneira de garantir alguma notoriedade. Não se trata de uma homenagem aos clássicos, mas de uma forma de torná-los ponte para algum reconhecimento perante o público. Afinal, se Peter e Alice já chamam a atenção sozinhos, juntos certamente a atenção será maior.
Outra forma de chamar a atenção é usar artistas conhecidos no elenco (Michael Caine está passando por dificuldades financeiras?). Angelina Jolie é Rose, a mãe das crianças, enquanto David Oyelowo é Jack, o pai. Poderiam ser Sandra Bullock e Wesley Snipes, ou Octavia Spencer e Steven Yeun: tanto faz o nome, as personagens não têm personalidade própria, bastando que não fossem interpretados por objetos inanimados. O drama familiar não é nulo, mas inorgânico e diluído na fantasia.
Nessa ótica, Brenda Chapman é fiel aos clássicos, pois há muita aventura fantástica em seu filme. Coerente com o projeto como um todo, as aventuras são despropositadas, aparecendo em inúmeras cenas que alongam mais a breve duração do filme porque, do contrário, ele seria um curta-metragem. A dupla principal (Keira Chansa como Alice e Jordan Nash como Peter, ambos muito artificiais, mesmo considerando a idade) tem enorme imaginação (um barco pequeno e abandonado se torna uma embarcação pirata, um graveto vira uma espada, um graveto se transforma em uma lança), mas é uma imaginação que quase não sai do lugar, salvo para as já mencionadas referências. A trilha musical combina bem com a proposta de aventura infantojuvenil; o design de produção é coerente com a época e o CGI é, em regra, aceitável. Nada isso ofusca, contudo, a reciclagem vergonhosa do filme.
Pelo contrário, é a reciclagem que ofusca as virtudes potenciais do longa. Elementos como a preocupação dos pais com os estudos dos filhos, vício em jogos, preconceito de classe social, racismo e rixa entre irmãos, dentre outros, estão presentes em “Alice e Peter”, mas de maneira extremamente tímida, quase invisível. Ao menos não ficaram no sonho.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.