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“ALL THE BEAUTY AND THE BLOODSHED” – Há algo sobrando ou faltando [46 MICSP]

Do ponto de vista da linguagem, ALL THE BEAUTY AND THE BLOODSHED é um documentário engessado, o que é paradoxal considerando que trata de uma artista que rompeu com as tradições de sua época. Autobiográfico, o filme abraça algumas causas, elencando uma delas como chamariz sem, todavia, dar-lhe espaço suficiente para desenvolvimento. Há algo sobrando ou faltando.

A vida e a obra da artista Nan Goldin sempre se entrelaçaram. Suas fotografias são pessoais, mas não por isso deixam de ser políticas. Mais recentemente, sua luta é voltada a responsabilizar a família Sackler pela crise de opioides nos EUA, da qual foi uma das vítimas.

(© Praxis Films / Divulgação)

A mescla entre a vida e a obra de Nan Goldin é apresentada pela sua própria narração e pelas fotografias tiradas ao longo dos anos e expostas no documentário. O epítome dessa união é a sua “Balada da dependência sexual”, um diário visual que reúne, de maneira mais ampla que o documentário, a trajetória de Goldin. Mais do que o sexo, a sexualidade sempre foi elemento importante em sua arte. De acordo com ela, foi com o sexo oral que conseguiu ingressar no mundo artístico – um universo avesso à pessoalidade de seu trabalho e à feminilidade da sua pessoa. Seu corpo precisou ser usado como moeda (assunto sobre o qual ela afirma falar pela primeira vez, porém sem aprofundamento, havendo um salto de um bordel para um bar), o sexo foi objeto direto de algumas fotografias e a subversão de um tipo de fotografia era associada ao seu gênero.

Goldin se apresenta como uma rebelde desde cedo, no seio familiar, com revelações íntimas e privadas que revelam um amadurecimento sobre tudo o que ocorreu – prazeroso e doloroso – no passar dos anos. A expulsão das instituições de formação pessoal (família e escola) foi mola propulsora para uma personalidade artística que estava nascendo. As relações afetivas tiveram papel de indicar um caminho de sobrevivência, dada a inexistência de sustentação institucional. O aprendizado se deu com as amizades e com os amores tanto nos momentos bons, como a mudança para Provincetown com David em 1975, quanto nos ruins, sobretudo a deterioração da relação com Brian (que resultou em sofrimento, mas mesmo assim, também, em crescimento).

A diretora Laura Poitras é hábil em demonstrar o quanto a vida de Goldin está contida em seu trabalho e em quanto o seu trabalho é voltado a ativismos. A variedade da atuação política de Goldin, contudo, acaba se tornando um obstáculo para o documentário de Poitras, que não consegue equilibrar tantos assuntos. Como resultado, a epidemia de AIDS, por exemplo, se torna um capítulo efêmero e pouco significativo, o que provavelmente não condiz com a realidade de Goldin à época. Teria sido melhor recortar um pouco da carreira da fotógrafa, evitando o desnível em relação à crise dos opiáceos, que é apontado (inclusive na sinopse oficial) como o grande assunto do filme, mas que não recebe a atenção devida.

Vale dizer, o lirismo da justaposição entre a vida e a obra de Nan Goldin não se repete na relação entre a biografia da artista e a causa que conduz a narrativa documentada. Poitras encontra uma dificuldade nessa aliança, como se o fascínio pela história de Nan tivesse uma força magnética que levasse a um esquecimento contínuo da bandeira por ela levantada contra a família Sackler. É verdade que o clímax ocorre em um trecho de maior atenção aos Sackler – a sequência da audiência -, um momento genuinamente comovente, porém os reflexos da conduta dessa família poderiam ensejar um documentário muito mais impactante. Uma mãe afirmando ter se tornado cúmplice da morte de seu filho é uma fração ínfima do quanto poderia ser explorado sobre as consequências dos atos dos Sackler; da mesma forma, a aparição de duas campanhas publicitárias dos opiáceos vendidos por eles é pouco para convencer que havia um modus operandi deliberado de lucro independentemente dos efeitos nocivos e viciantes da droga. Não se trata de questionar se eles realmente tinham ciência desses efeitos e ainda assim os negavam e disseminavam mentiras para lucrar, isso é fácil de se acreditar. Trata-se de esperar que o documentário desenvolva efetivamente essa malevolência ao invés de presumir que o espectador acredite pelas afirmações de Goldin.

Diante do engajamento e, principalmente, da ousadia de Nan Goldin, era de se esperar de “All the beauty and the bloodshed” um documentário mais subversivo ou criativo em sua linguagem, que fica restrita a recursos tradicionais como entrevistas e fotografias. Para ser marcante, o filme poderia focar na vida de Goldin, deixando a crise dos opiáceos como um mero episódio ao invés de simular que a coloca no centro da sua discussão. Ou, ao contrário, poderia reduzir substancialmente sua biografia e focar no outro assunto, esmiuçando-o para elevar o impacto da mensagem. Algo está além ou aquém nessa equação.

* Filme assistido durante a cobertura da 46ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.