Nosso Cinema

A melhor fonte de críticas de cinema

“ANATOMIA DE UMA QUEDA” – Perspectivismo nietzschiano [47 MICSP]

* Filme vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes de 2023.

Em sua obra, Friedrich Nietzsche defendeu o perspectivismo, ideia segundo a qual não existe uma verdade neutra e absoluta, mas verdades que dependem do ponto de vista do indivíduo, carregado de seus valores, crenças e experiências. Buscar a verdade, segundo ele, é um ato de poder – a “vontade de poder” -, uma vez que implica a imposição desse ponto de vista individual. Em ANATOMIA DE UMA QUEDA, o perspectivismo nietzschiano se torna latente na narrativa.

Em Grenoble, cidade francesa da região Rhône-Alpes, a escritora Sandra é entrevistada por uma estudante enquanto seu marido, Samuel, trabalha. Alguns minutos depois do encerramento da entrevista, Samuel é encontrado morto por força de uma queda da janela, morte que aconteceu enquanto Daniel, o filho do casal, tinha saído. O que teria motivado a queda?

(© Diamond Films / Divulgação)

A diretora Justine Triet atribui bastante importância aos minutos iniciais, precedentes e posteriores ao evento principal, que não é mostrado. Diante do mistério a ser (ou não) solucionado, os detalhes podem (ou não) fazer a diferença, razão pela qual os atos acontecem com ritmo adequado. A direção é minimalista, deixando mais espaço para a narrativa em si. Na primeira parte, o cenário principal é a casa da família e seus arredores, em meio às montanhas nevadas dos Alpes, região afastada e que pode (ou não) simbolizar frieza no seio familiar; na segunda, é o tribunal onde o julgamento se torna um circo com plateia (colaboração da geografia do local) e espetacularização midiática (que ocasionalmente se torna o ponto de vista do filme, a partir do enquadramento). A cor vermelha, fortemente presente na beca do Promotor, está no vestuário de Daniel sempre que ele se filia à tese acusatória, se afastando (idealmente, nem sempre fisicamente) da mãe: ainda não se sabe ao certo o que aconteceu (nem se isso será revelado), o que existem são versões da verdade, que é necessariamente parcial.

Essa parcialidade é explorada a partir da experiência pessoal presente e ausente. A diretora uso o poder do que não foi visto ao colocar Sandra narrando os fatos para Vincent, o que faz sentido porque nem sempre a verdade pode se filiar ao que é visto. No caso da experiência presente, a subjetividade é traduzida por meio do som (o flashback sonoro da primeira cena da segunda parte, com a música “P.I.M.P”), da imagem (o flashback meramente visual do vômito) e do próprio texto (a exposição da intimidade de Sandra, a convicção contundente dos peritos e do médico). Ainda que parte do que foi experienciado possa ser mostrado, a exibição pode nem sempre ser completa, tornando ainda mais maleável (e questionável) a verdade. Não apenas a imagem, mas também o som tem papel importante, é o caso da função narrativa da deficiência visual de Daniel, a ressignificação a posteriori da música tocada por Samuel (cujo ritmo não combina com a gélida Grenoble, mas cuja versão original pode subsidiar uma hipótese).

Triet emprega zoom in em alguns momentos, colocando Sandra e Daniel em primeiro plano ou mesmo primeiríssimo plano para enfatizar suas microexpressões (como quando ela conta como conheceu Samuel). Isso faz sentido sobretudo graças ao elenco qualificado. A primeira é interpretada por Sandra Hüller (dos premiados “Zona de interesse” e “As faces de Toni Erdmann”, além da parceria com Triet no medíocre “Sibyl”), que atribui à personagem a frieza necessária para torná-la ambígua, mas não suficiente para levar a conclusões precipitadas. O segundo é vivido por Milo Machado Graner, cujo olhar doce e cabelo comprido dão a Daniel uma aura angelical, quase um paradoxo com a sua função narrativa. Também no elenco está Swann Arlaud como o advogado Vincent, ótimo ator francês que poderia ser melhor aproveitado para além de uma sugestão maliciosa do roteiro, escrito por Triet e Arthur Harari.

O texto dos dois, contudo, opta por ser hermético, priorizando o incidente incitante e o tema correlato, a relatividade da verdade. Fiel a tais premissas, o script trabalha sempre com versões dos fatos, com complicações progressivas a partir de incongruências nas explicações, enevoando o backstory de Sandra e Samuel. Como subtexto, Vincent insiste com Sandra que o que importa não é o que realmente aconteceu, já que “o julgamento não é sobre a realidade”. De maneira análoga à literatura, com a qual o longa tem um intertexto provocativo, o que importa é o que está corporificado no presente, não elucubrações de um passado que constituem nada mais que teorias. Quando o Promotor se refere ao livro de Sandra, dá vazão à sua vontade de poder na medida em que mesmo que ele esteja convencido, o que ele tem é uma versão, a sua versão, da verdade – e vale o mesmo para Vincent e Daniel, por exemplo. Aliás, vale o mesmo para Sandra, cuja visão é necessariamente parcial, como ela verbaliza para o médico de Samuel. Quanto mais a narrativa se desenvolve (em um crescendo envolvente em cada parte), mais fica claro que, para todas as personagens, a verdade varia de acordo com a sua perspectiva singular.

* Filme assistido durante a cobertura da 47ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).