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“APENAS MORTAIS” – O tema é mais potente que o filme [44 MICSP]

Dentre os melhores filmes sobre Alzheimer estão “Amor”, de 2012, e “Para sempre Alice”, de 2014. O primeiro é um filme verdadeiramente tocante que nega os clichês e estereótipos da doença; o segundo tem um trabalho espetacular da atriz protagonista. APENAS MORTAIS não tem tais qualidades e tem muito mais defeitos que os filmes mencionados, mas não por isso deixa de ser comovente.

Xia Tian muda de emprego e retorna à sua cidade natal para ajudar sua mãe a cuidar do pai, que sofre de uma doença degenerativa. Terminando o relacionamento com um homem casado, ela acredita que um recomeço no retorno ao lar pode ser bom para todos da família. Entretanto, a condição do pai é mais grave que imaginava, deixando todos sem saber ao certo como agir.

Embora não seja dita expressamente a doença do pai, os sintomas são de Alzheimer (e é a doença que consta na sinopse oficial do filme). Zhang Hongjing faz um trabalho bom no papel, em parte por não haver grandes demandas – basta parecer sempre alheio a tudo que o cerca. Diversamente de Julianne Moore em “Para sempre Alice”, o estágio da patologia não permite que ele tenha consciência dela, o que faz com que a responsabilidade recaia integralmente nos familiares.

Assim, destaca-se Li Kunmian no papel da mãe, demonstrando compreender bem a complexidade da personagem. De um lado, não quer que as filhas assumam o papel que entende ser seu (o de cuidar do pai/marido). É o que justifica o empurrão que dá em Xia Tian quando esta tenta ajudá-la a levantar o pai – por sinal, talvez seja a cena mais dolorosa, sobretudo pela interpretação da atriz. Por outro lado (e aqui está a riqueza da personagem), ela não é uma heroína incansável, por isso briga com o marido e a filha em um momento de explosão. Trata-se de uma ambiguidade que favorece a personagem, o que explica o martírio imposto a si de olhar o álbum de fotos (é uma sensação agradável recordar o pretérito saudável do marido, porém viver o presente se torna um sofrimento ao fazer a comparação). “Amor” é mais visceral no que se refere ao relacionamento afetivo envolvendo uma pessoa com Alzheimer, mas “Apenas mortais” não vai mal nesse quesito.

Escrito pelo diretor Liu Ze juntamente com Zhang Weiping, o roteiro é habilidoso no trato da doença, mas não tanto em relação à narrativa em si. A progressão da enfermidade é exibida de maneira devastadora na mesma proporção em que falar sobre o assunto é uma dor em si mesma. Não por outra razão, Xia Tian fala para a mãe que a condição do pai está piorando não olhando nos olhos da genitora, mas de costas para a parede e em outro recinto (um dos acertos na mise en scène). A incapacidade do pai é imensa, ficando ele privado das tarefas mais triviais de qualquer ser humano. O duelo entre as filhas e entre estas com a mãe é explorado de maneira realista e sem sensacionalismo: a ajuda cotidiana exige esforço demasiado em razão do trabalho; a ajuda financeira soa como a compra da tranquilidade.

Não obstante, narrativamente, o script deixa a desejar. Xia Tian tem um arco narrativo romântico mal explorado e que em nada contribui para a trama principal, referente ao seu pai. Aliás, Tang Xiaoran não consegue assumir o protagonismo que lhe é imposto pelo papel, além de não convencer no romance com Qin Mu (Shi Xiaofei). Progressivamente, o texto vai perdendo o foco, o que se torna problemático também pelas elipses feitas em desnecessários saltos. Como se não bastasse, há diálogos sofríveis – merecem menção a abordagem piegas de Qin Mu perante Xia Tian (“já namorei muitas mulheres, mas nenhuma tocou meu coração como você”) e a insensibilidade assustadora do médico que fala com a moça.

Na direção, Liu Ze demonstra habilidade através de um uso da câmera que transmite sensibilidade e proximidade à trama (aproximação lenta, cenários filmados na diagonal, panorâmica, planos longos etc.). Há cenas realmente boas, como a que Xia Tian e Qin Mu estão na escola em dois momentos de sua vida e a que a moça dança com o pai em uma névoa, ao som de acordeão. O uso reiterado da cor preta no vestuário das personagens é coerente com o melodrama proposto pela película (é bonito ver também que ela combina com a camisa branca de Qin Mu, deslocando-o do arco dramático principal). Entretanto, mais ao final, o cineasta se perde através de uma cena cuja estética é de terror, sem função narrativa (o que também ocorre no epílogo). Se o filme comove aqui e acolá, é mais pela potência de seu tema e por insights elogiáveis do que pela sua qualidade como um todo.

* Filme assistido durante a cobertura da 44ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.