“APRESENTANDO OS RICARDOS” – Quem é Lucille Ball?
Modelo, atriz, comediante, cantora, produtora executiva de cinema e televisão. Estas são as várias facetas de Lucille Ball, conhecida por seus trabalhos na Broadway, na RKO Radio Pictures e, principalmente, na sitcom “I love Lucy“. Ao longo de uma trajetória compreendida entre as décadas de 1930 e 1960, ela viveu amores, sucesso profissional, reconhecimento popular, divergências criativas, crises familiares e controvérsias políticas. São tantos e diversos elementos de uma vida que APRESENTANDO OS RICARDOS tenta captar sem definir uma unidade sólida.
Em uma estrutura dividida nos cinco dias de uma semana, a trama acompanha o casal Lucille Ball e Desi Arnaz durante a produção de um episódio de “I love Lucy“. Eles não passam por uma fase tranquila no casamento, já que a esposa desconfia dos longos períodos em que o marido fica fora de casa. Além disso, eles ainda precisam lidar com os tabus culturais nos bastidores das filmagens da série e uma difamação política relacionada à acusação de envolvimento da atriz com o comunismo.
Decididamente, o filme é muitos em um só. É um filme de observação sociopolítica, é uma comédia metalinguística e é um drama romântico. A primeira faceta citada é um dos gatilhos iniciais da narrativa, quando uma briga e a reconciliação de Lucille e Desi é interrompida pela locução de um radialista que acusa a mulher de ter ligações com o Partido Comunista. No contexto da década de 1950, governos, imprensa e sociedade estadunidenses realizaram uma “caça às bruxas” de comunistas, simpatizantes do comunismo ou pessoas que eram erroneamente consideradas comunistas. Inicialmente, a acusação contra Lucille e as declarações dadas ao Comitê de Atividades Antiamericanas poderiam conferir uma ambientação histórica poderosa à trajetória da protagonista, mas a subtrama não passa de um acessório vazio. Ao invés de se desenvolver, a subtrama desaparece, surge pontualmente, novamente desaparece e não contém a tensão da incerteza quanto a sua resolução. Desse modo, a dimensão política é simplificada – desperdiça as chances de tocar no tema da paranoia anticomunista – e não gera o impacto emocional buscado pelo clímax.
Se a abordagem política e histórica não vai além de menções ocasionais, a comédia metalinguística possibilita as melhores sequências. Como retrato de um período cultural específico, a narrativa faz observações variadas sobre o panorama cinematográfico e televisivo dos anos 1950: o modelo star system de grandes estrelas, os atritos entre produtores e diretores/roteiristas, o processo criativo para a concepção dos roteiros do público (sob a influência moralista da época do Código Hays, não era sequer possível colocar em cena uma mulher grávida porque indicaria que ela tem uma vida sexual) e o declínio de atrizes excluídas de grandes papéis após certa idade. Essa metalinguagem se concretiza nas conversas entre Desi e os produtores executivos sobre os rumos do programa, nos diálogos entre os roteiristas sobre as piadas de cada capítulo e, sobretudo, nos confrontos de Lucille com o diretor Donald Glass sobre a filmagem de um episódios específico.
Os momentos em que a protagonista discute com o diretor e outros membros da equipe são eficientes por duas razões. Primeiramente, a atriz questiona as formas como a cena inicial deveria ser filmada e a dinâmica na mesa de jantar deveria ocorrer para um capítulo em especial, potencializada pelo trabalho de Nicole Kidman na composição de uma personagem segura, decidida, contundente e competente para firmar suas opiniões e comprovar a pertinência de suas ideias – inclusive, os ensaios dramatizando as mudanças exigidas pela comediante produzem sequências melhores. Além do esforço de Nicole Kidman para conceber uma figura tão imponente até nos instantes mais triviais em que aparece fumando, a narrativa é qualificada por uma montagem que alterna entre as filmagens realmente realizadas em cores e projeções das releituras de cenas por Lucille em preto e branco – através do humor, cria-se uma alternância de planos e segmentos que contextualizam o processo criativo da artista e de uma série.
Em contrapartida, os bastidores da criação de um episódio de “I love Lucy” não assumem totalmente o centro dramatúrgico da obra. Além do componente político, Aaron Sorkin insere traços mais comuns de uma cinebiografia para abordar outros momentos da vida de Lucille Ball. Frequentemente, o cineasta cria passagens em um estilo documental nas quais atores interpretam produtores e roteiristas, que conviveram com a comediante, relembrando o passado dela e seu relacionamento com Desi, exibidos em flashbacks. O que poderia dar conta da subtrama envolvendo a crise conjugal dos artistas se revela um conjunto de recursos que atropela a narrativa principal, pois os testemunhos manipulam os espectadores a acreditarem que são pessoas reais contando suas memórias e os flashbacks são apenas ilustrações dos depoimentos anteriores menos interessantes do que os acontecimentos no estúdio. Além disso, o núcleo em torno dos amores e das brigas do casal não cresce o suficiente por conta da presença limitada de Desi Arnaz gerada apela performance de Javier Bardem girar ao redor apenas da imagem do amante latino que ganha repercussão social a partir de seu carisma e talento musical.
Falta também a Aaron Sorkin um domínio mais elegante da mise-en-scène para conseguir integrar tudo aquilo que integra a diegese. Ele despontou em Hollywood como um roteirista especializado em temas políticos e velozes diálogos compostos por muito texto para os atores, como se pode observar nas séries “West Wing” e “The Newsroom” e em filmes como “Questão de honra“, “A rede social” “Jogos do poder” e “Steve Jobs“. Porém, desde sua entrada no mundo da direção, Aaron Sorkin tem dificuldades de equilibrar o estilo de seus roteiros e a construção cênica dos planos, fazendo o primeiro desequilibrar o segundo em títulos como “A grande jogada” e “Os 7 de Chicago“. Em seu projeto mais recente, o cineasta insiste na mesma fórmula de fazer os personagens se confrontarem em diálogos mais conflituosos ou irônicos enquanto caminham por corredores ou entram e saem de salas, quartos ou outros cômodos. É uma dinâmica cênica que se empobrece com a repetição e não cria a tensão que se pretendia com a divisão da narrativa ao longo de uma semana atribulada na vida de Lucille (por sinal, a indicação da passagem dos dias é feita por letreiros preguiçosos que nem se articulam com o universo de uma sitcom).
As cinebiografias geralmente buscam fazer retratos extensos das vidas dos biografados, cobrindo todos ou muitos momentos de suas existências. É particularmente atrativo quando alguma escolhe recortes mais específicos para encenar, preferindo dar destaque a alguma passagem a enfrentar o desafio complexo de contar uma história de vida em duas horas ou pouco mais. No caso da protagonista de “I love Lucy“, Aaron Sorkin se debate entre priorizar os bastidores da criação de um episódio da série com o talento cômico de sua estrela e cobrir as controvérsias políticas ligadas ao anticomunismo da década de 1950 e o turbulento casamento com Desi Arnaz. Embora todos os arcos encontrem uma conclusão no desfecho (nem todos tão satisfatórios em face das promessas feitas no primeiro ato, Aaron Sorkin não dá alma ao seu filme. Consequentemente, é possível se perguntar ao fim quem é, de fato, Lucille Ball e que tipo de obra “Apresentando os Ricardos” termina sendo.
Um resultado de todos os filmes que já viu.