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“ÀS VEZES QUERO SUMIR” – Epidemia de desencantos

A subversão de gêneros clássicos tem se tornado tradicional no cinema americano. Talvez motivada por um endurecimento do público, estilos antigos, comprometidos com uma utilização mais pura das imagens em movimento, foram condenados, considerados “bregas” ou “ultrapassados”. Ainda que se justifique em sua proposta, o clínico ÀS VEZES QUERO SUMIR se filia a essa tendência, sintoma de uma época em que a anulação da nossa realidade se vê cada vez mais dificultada.

Dona de uma rotina bastante tediosa, Fran trabalha em um escritório pacato e fantasia com maneiras de morrer em sua pequena cidade interiorana. A contratação de um novo colega, Robert, muda a sua vida quando um romance começa a nascer. Mas seus pensamentos intrusivos não aceitarão o relacionamento com tanta facilidade.

Dirigido por Rachel Lambert, o projeto parte de uma premissa convencional para atravessa-lá com uma diversidade de recursos que a desvirtuam. Tais escolhas constroem um desvio interessante, e que não necessariamente confabulam para o esvaziamento do projeto. Chama a atenção o abuso dos planos com pouca profundidade de campo, ditando jogos de desconexão entre a protagonista, seus companheiros de trabalho, e até mesmo o espaço em que se insere.

(© Synapse Distribution / Divulgação)

Ainda que tal ferramenta esteja longe de ser uma novidade, a decupagem prioriza detalhes de pequenos objetos, compondo uma espécie de escapismo imagético condizente com o a personagem que acompanha. Sua falta de pertencimento se espelha em enquadramentos difíceis de se antecipar pela dinâmica dos diálogos, transgredindo a lógica do plano e contraplano. A câmera se aproxima de pequenos signos, que para além da representação objetiva do estado de Fran, imprimem um curioso senso de instabilidade sobre a montagem.

A instabilidade em se auto compreender e entender o outro, conforme o laço que se estabelece entre ela e Robert. No papel central, Daisy Ridley se destaca com a força de seu olhar, sugerindo uma complexidade que jamais exige um esclarecimento. Muito disso se deve ao trabalho físico com que constrói a protagonista, imprimindo aquele isolamento na rigidez de seus movimentos e nas sequências oníricas em que flerta com o desejo pela morte. Essa encenação última, inclusive, abarca a única instância mais “artesanal” do longa-metragem, produzindo florestas de papelão com um teor altamente teatral.

No geral, todavia, é a antipatia desse universo que acaba permanecendo com maior força. Ainda que a dose seja consciente, a construção do relacionamento que propõe, mesmo às avessas, a superação dessa atmosfera, se prova insuficiente. As dificuldades de Fran em se aproximar de Robert ditam a perspectiva do espectador, diminuindo o potencial do carismático Dave Merheje.

Novamente, seria injusto não reconhecer que o filme se filia abertamente à incompletude desses registros, mas ao flertar com as faíscas cômicas – e nem por isso passagens no sentido mais ontológico das comédias românticas, ainda assim diluídos pela veia de um cinema “moderno” – de um casal cheio de química, não recompensa o espectador.

É curioso pensar na forma como os filmes, internamente, aparecem para cimentar a aproximação entre as duas personagens. Se Robert é um cinéfilo aficionado, Fran estabelece barreiras com relação aos filmes que assiste. Estar à deriva significa rejeitar tais proposições fantasiosas, uma crença nas imagens que o primeiro parece tanto amar.

E esse entrelace representa um estado do atual mercado cinematográfico. Pro bem ou para o mal, a ruína de grandes filmes de estúdio e a ascensão de produtoras independentes – vide o sucesso da A24 – tem sido interpretada, por alguns, como uma negativa de toda e qualquer relação mais tradicional com a imagem. Relação essa demarcada pelo ímpeto de se projetar para uma outra realidade, não necessariamente absurda, mas que se permita a um afastamento mínimo do realismo.

Não que os delírios de Fran passem desapercebidos, mas a lógica que o filme reproduz desse adormecimento tem se apossado de uma grande leva de produções. Filmes que se afastam de suas raízes mais imediatas, buscando um processo de intelectualização muitas vezes descomprometidos com a linguagem que tanto especifica o cinema enquanto arte.

São muitos os destaques positivos nesse âmbito, por outro lado, especialmente na mescla entre aspectos mais convencionais e outros de inovação. Mas em “Às vezes penso em sumir”, apesar de algumas escolhas visuais e da boa dinâmica no elenco, o resultado final é apenas a repetição morna de tendências contrárias à dramaturgia enquanto potência. À movimentação de corpos apaixonados, rostos que estampam o dilema atravessado em suas vidas, artifícios cunhados por um cinema tradicional mas que podem ser atualizados sem perder o próprio encantamento.

Resta torcer para que a morbidez dessas leituras de mundo, clinicamente ligadas ao real, não inibam a coragem de novos atores em acreditar no fantástico enquanto outra forma de atualização de tradições cinematográficas.