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“AS VIÚVAS” – O filme é delas

Mesmo sendo um heist movie (filme de assalto), AS VIÚVAS não é sobre um assalto, mas sobre a bravura feminina. Em síntese, mulheres não dependem de ninguém a não ser de si mesmas; são autossuficientes a ponto de trilhar caminhos até então não percorridos. Embora se trate de uma obra de ficção, o filme é realista (no sentido leigo do termo), inclusive no retrato do empoderamento feminino.

No longa, Veronica e Harry têm um casamento feliz, até que ele morre durante um roubo que pratica. Porém, ela não tem tempo para luto: a vítima, um homem perigoso iniciando sua carreira política, quer o dinheiro de volta. Como solução, Veronica recruta as esposas dos homens que trabalhavam com Harry e que também morreram durante a empreitada. A tarefa que elas têm a enfrentar é ainda mais duras que a dos falecidos – o que, todavia, não as intimida.

Cartaz brasileiro de “As viúvas

Baseado no livro homônimo de Lynda La Plante, o roteiro de Gillian Flynn e Steve McQueen deixa bem claro que não existem “santos” – ou, dito de outro modo, que todos têm um lado obscuro que pode ou não aparecer, a depender da necessidade. Não há heróis ou vilões no plot, apenas pessoas reais (talvez algumas mais corrompidas que outras, apenas). O poder é objeto de desejo de alguns, que, contudo, não o alcançam sozinhos, tampouco agindo sempre no campo da licitude (e de preferência sem sujar as mãos). A política demanda articulações variadas, havendo setores sociais (leia-se, a Igreja) com líderes (religiosos) que precisam ser seduzidos para influenciar seus seguidores em um ou outro sentido. A polícia é truculenta; para ela, a vida humana pode não ter valor, a depender do sujeito. A quem está à margem de tudo isso cabe se sujeitar.

É um texto que reproduz, talvez, uma realidade dura, mas que não deixa de ser um retrato fiel do mundo. É o cinema “revelando a realidade”, parafraseando Jacques Aumont ao estudar cineastas do período entreguerras. Para transmitir essa ideia, na direção, Steve McQueen tem um esmero ímpar. Além do texto potente, o longa é dirigido de maneira formidável. Com planos longos e planos-sequência, McQueen cria diversas cenas longas (em relação à duração), deliberadamente arrastadas, com o objetivo de transportar o espectador para a diegese. Pode parecer que o filme é lento algumas vezes, mas não é sem propósito o ritmo cadenciado, tudo faz parte do escopo imersivo (que, no drama, pode ser muito mais difícil que na fantasia). Por exemplo, não é à toa que a trilha conta com apenas duas músicas extradiegéticas; ao passo que uma das músicas intradiegéticas é a linda canção “Wild is the wind”, cantada por Nina Simone e ouvida por Veronica em um momento de introspecção e revisitação (o fato de ser uma cantora mulher e negra é também simbólico).

A cena mencionada pode parecer desnecessária, mas é fundamental para compreender a personagem e facilitar a identificação cinematográfica secundária. Ainda, a utilização do reflexo no espelho é um recurso inteligente para mostrar que aquilo não está acontecendo. Outro exemplo é a cena em que Jatemme (Daniel Kaluuya, em atuação discreta) ouve dois homens cantando rap: a filmagem em spinning shot, com aproximação e posterior distanciamento, é mostra clara do domínio técnico de McQueen, que assim coloca o espectador na diegese e aumenta a tensão do momento. Os recursos de requinte que o diretor usa não estão lá por acaso, como a contraposição da tórrida imagem inicial com o raccord sonoro que a segue, ou mesmo a montagem paralela da sequência do prólogo.

O problema de fazer um filme com várias personagens, entretanto, McQueen não conseguiu contornar: nem todas são bem desenvolvidas. O texto é bom, porém deixa a desejar nesse quesito. Interpretada por Viola Davis, Veronica não é apenas a personagem principal, mas o fio condutor da narrativa, já que é quem a impulsiona do início ao fim. Como era Harry (Liam Neeson, sempre competente) o líder do grupo de assaltantes, é Veronica quem assume o posto após a sua morte, planejando, orientando e cobrando as colegas. Apenas uma atriz do calibre de Davis é capaz de transmitir o backstory da personagem e seu sofrimento com tamanho ardor. Com ela, um grito em frente ao espelho é muito mais eloquente que qualquer verbalização. Ela é a síntese da mulher empoderada.

Outra que se destaca é Elizabeth Debicki, que parece uma moça vulnerável, mas que se revela diante da necessidade (a cena em que sua personagem enfrenta Veronica é de um fervor admirável), tendo um arco dramático robusto e coerente. Michelle Rodriguez, por outro lado, é mal aproveitada, pois seu arco dramático é meramente esboçado, sem progredir (e a cena do beijo é desconexa, talvez em razão da montagem). O arquétipo que lhe coube (da mãe que dá o próprio sangue – metaforicamente – para garantir o melhor aos filhos) é melhor delineado na Belle de Cynthia Erivo, joia da Broadway que Hollywood pode estar prestes a descobrir.

Entre os homens, Colin Farrell, Robert Duvall e Brian Tyree Henry não atuam mal, mas inegavelmente os holofotes ficam com elas – não se olvida, todavia, da construção rica das personagens respectivas, que não representam vilões simplistas. De todo modo, não é por acaso que o animal de estimação de Veronica é Olívia – e não Oliver. O filme é delas.

Em tempo: há quem reprove o filme por ser um olhar feminino através das lentes de um homem (Steve McQueen). Além de isso ser uma verdade incompleta (a autora da obra original é mulher), não descredibiliza a produção – primeiro pela exposição digna da figura feminina, segundo porque, na pior das hipóteses, traduz a admiração de um homem pelo avanço do papel da mulher na sociedade.