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“ASSASSINATO EM GOSFORD PARK” – Mistério, comédia de costumes e drama familiar

Filme assistido na plataforma da Mubi (clique aqui para acessar).

Quando se fala em histórias de investigação, provavelmente Agatha Christie é o grande nome da ficção (juntamente com Conan Doyle e seu Sherlock Holmes, é claro). Suas obras ultrapassaram gerações, saindo das fronteiras literárias para ganhar adaptações cinematográficas – que geralmente não alcançam o brilhantismo de seus textos. ASSASSINATO EM GOSFORD PARK tem a fisionomia de um mistério à Agatha Christie, mas essa é apenas sua primeira camada.

Em 1932, Sir William McCordle e sua esposa, Lady Sylvia, convidam um grupo de amigos para passar uns dias em sua mansão, em Gosford Park. A reunião inclui lordes e condessas, mas também figurões de Hollywood, como o produtor Morris Weissman e o ator Ivor Novello. Muitos deles levam seus criados, como é o caso de Constance Trentham e sua Mary Maceachran e o casal Stockbridge e seu Robert Parks, que se unem aos que já trabalham na casa, sob o comando da Sra. Wilson. Em meio a intrigas, fofocas, futilidades e relacionamentos secretos, ocorre um assassinato.

(© Mubi / Divulgação)

Tudo leva a crer que se trata, de fato, de um filme à Agatha Christie – porém não uma adaptação, já que o roteiro é original, fruto da ideia do diretor Robert Altman e de Bob Balaban, mas de autoria de Julian Fellowes -, ou seja, um mistério a ser desvendado. A atmosfera dos anos 1930, traduzida por um belíssimo design de produção de época, esboça todos os elementos típicos desse tipo de trama: pessoas ricas e esnobes, pessoas invejosas, motivações variadas para o assassinato, meios fáceis de execução (muitas facas, uma delas some; planos-detalhe em venenos) e, enfim, o homicídio em si. A cena do crime é filmada em primeiro plano, mostrando apenas os pés e as mãos do criminoso, com várias personagens aparecendo logo em seguida com um jeito suspeito.

Contudo, “Assassinato em Gosford Park” não é apenas um filme de mistério. Isso seria positivo, não fossem as estratégias do próprio longa para embaçar o crime. A primeira e principal é o número enorme de personagens, sendo difícil decorar seus nomes. Com isso, torna-se também tarefa complicada descobrir quem praticou o crime e suas motivações, pois as personagens são tratadas com plasticidade, como se fossem descartáveis. Não que o filme precisasse ser um filme de personagens, não é essa a sua proposta, mas o exagero, além de desnecessário, torna a trama deveras confusa – e não há razão para confundir o espectador.

Em uma camada mais profunda e mais interessante, há uma comédia de costumes e um drama familiar. No primeiro caso, a obra não se relaciona com a ideia de crime e de mistério, o que exaspera a confusão já mencionada. Por que tamanho espaço para as relações pessoais? Por que dividir o filme em dois? É provocativa a forma jocosa pela qual a aristocracia britânica é retratada, especialmente na maravilhosa Maggie Smith: Constance é a personagem mais divertida da película, com uma acidez deliciosa (como ao provocar Ivor mencionando que seu último filme foi um fracasso), doses consideráveis de hipocrisia (Mary não deve ser discreta, a fofoca é estimulada, exceto em relação aos segredos da própria Constance) e reclamações infindáveis (a marmelada, a música de Ivor etc.).

Ainda na comédia de costumes, mesmo não sendo tão engraçada quanto Constance, a estratificação social é tão absurda para tempos atuais que se torna cômica. Os empregados não são pessoas autônomas, razão pela qual devem ser chamados pelos nomes dos seus patrões – na prática, eles têm dois nomes (o próprio e o do patrão), o que confunde ainda mais a plateia. Muitas vezes, não são sequer pessoas, como no caso de Mary (Kelly Macdonald), que fica no frio e na chuva para abrir uma garrafa térmica do inadiável chá da tarde). Para alguns, acabam sendo objeto, como é o caso de Elsie (Emily Watson) – que na verdade se revela a mais humana de todos ali – e Henry (Ryan Phillippe), que procura a própria objetificação. Phillippe tem talvez a segunda melhor personagem do longa, seja pela dubiedade em relação à sua identidade, seja pela dubiedade em relação à própria personalidade, de modo que o sotaque feito pelo ator agrega muito ao papel.

No drama familiar, cresce o espaço da Sra. Wilson (Helen Mirren), da Sra. Croft (Eileen Atkins) e de Robert Parks (Clive Owen). Entretanto, o filme é deveras óbvio no arco narrativo dessas personagens, ofuscando em demasia tudo o que envolve Sir William (Michael Gambon). Há um exagero de ramificações narrativas, como no caso do Sr. Jennings (Alan Bates), e de personagens desperdiçadas, como George (Richard E. Grant). Há muita informação para pouco espaço, três gêneros de filme e três narrativas em apenas um, poluindo a obra.

Enquanto os ricos se preocupam em caçar pássaros (o que pode ser perigoso e nem é do interesse de todos) os que não estão em posição tão privilegiada tentam ascender socialmente de alguma forma – isso quando não questionam por que alguns fazem ouro de tudo o que tocam ao passo que outros lutam sem conseguir nada (reflexão do Anthony de Tom Hollander). “Assassinato em Gosford Park” oferece ao público uma miríade de subtramas, personagens e informações, impossibilitando o aproveitamento de tudo. Ao conceber uma atmosfera de mistério, coloca o foco do espectador no aspecto que não é o mais instigante, empalidecendo o drama familiar (que apenas ao final tem desenvolvimento efetivo) e ofuscando muito a comédia de costumes. Se ficasse apenas com a sátira, seria brilhante.