“ATAQUE DOS CÃES” – Confronto de desejos silenciados
Um dos gêneros cinematográficos mais associados à história dos EUA é o faroeste. Mesmo tendo sido apropriado e ressignificado em outros países, como a Itália fez com os western spaghetti de Sergio Leone, continuou como traço característico do imaginário cultural estadunidense. As histórias do Velho Oeste encapsularam práticas e mentalidades do século XIX, entre as quais figuram as imagens de caubóis, indígenas, peregrinos, progresso e desbravamento. É com este conjunto de símbolos que Jane Campion dialoga em ATAQUE DOS CÃES, revisando o faroeste à luz de novas compreensões da masculinidade e dos desejos.
Phil e George são dois irmãos ricos e proprietários da maior fazenda de Montana. O primeiro é um excelente vaqueiro, mas cruel e grosseiro, já o segundo é a gentileza em pessoa. A relação dos dois vai do céu ao inferno quando George se casa com a viúva Rose e leva a mulher e o filho dela, Peter, para viver na propriedade. A partir daí, Phil se coloca como um obstáculo para a felicidade do casal até o momento em que antigos segredos vêm à tona.
Os dois irmãos constituem facetas muito diferentes da masculinidade, sendo evidentes nas sequências que se passam na estalagem onde Rose e Peter servem refeições: Phil humilha Peter apenas pelo jovem ser sensível e fazer flores decorativas com dobraduras de papel, além de gritar com pessoas que cantavam e dançavam no salão; George se solidariza com Rose ao ouvi-la chorando pelo que fizeram com seu filho e a ajuda a servir os pratos quando ela está sozinha. Visualmente, as diferenças entre eles podem ser assimiladas no figurino escurecido e modesto de vaqueiro de Phil e no seu desinteresse pela higiene (não toma banho nem faz a barba), enquanto as vestimentas de George são formais e/ou claras e sua higiene é motivo de cuidados básicos (sua primeira aparição é em uma banheira e sua pele está sempre asseada). E muito desse contraste se deve também às construções de personagens feitas, respectivamente, por Benedict Cumberbatch e Jesse Plemons.
Benedict Cumberbatch cria um homem rude e grosseiro, que faz suas tarefas no rancho sem se permitir explorar suas emoções, ao passo que Jesse Plemons constrói um homem gentil e empático, que parece deslocado em um mundo onde seus sentimentos são tolhidos. Nas duas caracterizações, é possível notar as influências de arquétipos do faroeste clássico, sobretudo o caubói durão que se impõe pelas armas ou pela força bruta e não tem espaço para emoções. Sendo assim, alguns planos em torno de Phil remetem às tradições do gênero, como os planos gerais das colinas ao longe e do trem chegando à estação, o deslocamento de um personagem em travelling recortado pela moldura de uma janela e o plano americano da silhueta de um personagem envolto por sombras. No que diz respeito a George, a construção visual não segue o mesmo princípio e se abre para uma carga emocional maior, como o plano conjunto de George e Rose no alto de uma colina no qual ele se emociona ao dizer que não se sente mais sozinho.
A masculinidade representada por Phil oprime também quem está ao redor. Rose se sente pressionada pelo contexto patriarcal de uma área rural em 1925, por ser uma mulher viúva tendo que sobreviver e cuidar sozinha do filho. Embora ela se case com o gentil George, as pressões continuam e relacionadas com os papéis que deveria desempenhar após ascender socialmente (a necessidade de tocar piano no jantar com os pais de George, o governador e sua esposa é sintomático disso). Porém, é a opressão de gênero que mais a afeta, sendo hostilizada silenciosa e abertamente por Phil, contrário ao casamento do irmão com quem julga ser manipuladora – nesse sentido, a atuação de Kirsten Dunst é essencial para se sentir o esvaziamento das forças da personagem. Em outra dimensão, quem não corresponde a essa masculinidade bruta sofre diferentes formas de violência, como é o caso de Peter, alvo de comentários homofóbicos na cena da refeição na estalagem e das “brincadeiras” intimidadoras no rancho.
Longe de se resumirem a uma opressão individualizada, as atitudes de Phil simbolizam uma mentalidade violenta e patriarcal da versão clássica dos caubóis em filmes de faroeste. Esta é uma percepção que pode vir do estilo da narrativa de Jane Campion, que utiliza silêncios, lacunas, ruídos e não ditos para encenar os abusos cometidos pelo protagonista. A presença de Phil já é suficiente para intimidar Rose, como acontece no momento em que ela conversava com o filho no primeiro plano da tela e a aparição do homem andando ao fundo a deixou desestabilizada. Por vezes, os sons feitos pelo vaqueiro no extracampo marcam sua truculência em relação à mulher, com os ruídos propositais feitos com a bota, o bandolim ou com assovios. Por exemplo, é o que ocorre nos instantes em que Rose não pode tocar piano tranquilamente porque Phil a atrapalha tocando seu bandolim.
Se a maneira como o protagonista se apresenta já poderia torná-lo bastante expressivo, seu desenvolvimento incorpora uma riqueza dramática que reposiciona o arquétipo do caubói para desconstrui-lo. Desde muito jovem, Phil tinha como inspiração Bronco Henry, um vaqueiro já falecido que lhe ensinou tudo que ele sabia. A princípio, as várias menções a Bronco Henry e o altar em homenagem a ele com sua cela parecem um meio de preservar a memória de um amigo, mas esta relação possui sentidos ocultos. Há um subtexto homoerótico trabalhado nas sutilezas que se expande pelas recordações de Phil e pelo modo como conta suas experiências com o mentor, construído assim porque o homem reprime sua identidade. O único lugar onde pode se deixar mais livre é um refúgio no meio da floresta, capaz de servir como abrigo, ambiente de liberdade e metáfora para seus desejos ocultos: ali, ele toma banho no rio, coleciona revistas eróticas e toca sensualmente em um tecido até então pertencente a Bronco Henry.
Então, quando Peter adentra no universo até então fechado a visitantes, os dois homens se aproximam. Phil e Peter passam mais tempo juntos, já que o primeiro assume a posição de Bronco Henry e compartilha seus conhecimentos de vaqueiro com o mais jovem. A partir da reviravolta na trama, Benedict Cumberbatch é desafiado a trabalhar com um personagem mais complexo do que as aparências sugerem, precisando dar uma fachada rude a ele e esconder desejos interditados pelo conservadorismo da época. Mantendo a mesma unidade estilística, Jane Campion desenvolve esta relação através de sequências ambíguas e sutis que, na superfície, podem proporcionar uma leitura imediata, porém guardam outras possibilidades conforme se mergulhe cada vez mais profundamente em suas dinâmicas. O subtexto homoerótico ainda está presente e é desenvolvido nos gestos aparentemente banais de puxar uma corda pela região da pélvis, tocar no braço de alguém por trás ou compartilhar um cigarro.
Chegada a conclusão, a diretora transforma mais uma vez as interações entre os personagens e os impactos dramáticos da obra. As últimas sequências abordam os desdobramentos da relação entre Phil e Peter a partir do padrão já estabelecido de silêncios, sutilezas e pequenos detalhes não ditos, especialmente um sorriso de Peter e um beijo entre Rose e George. “Ataque dos cães” expõe com um tremendo valor cinematográfico os efeitos de tantos anos de opressão feita por uma masculinidade dominadora, grosseira e fria que reprime outras identidades. Especificamente no caso de Phil, são formas de opressão histórica e cultural fundamentadas no arquétipo limitador dos caubóis antigos do faroeste porque algumas narrativas também podem ser silenciadoras e invisibilizadoras.
Um resultado de todos os filmes que já viu.