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“AVES DE RAPINA – ARLEQUINA E SUA EMANCIPAÇÃO FANTABULOSA” – Algum conteúdo, conteúdo algum

“Um arlequim não é nada sem um mestre. E ninguém liga para o que somos além disso”. AVES DE RAPINA – ARLEQUINA E SUA EMANCIPAÇÃO FANTABULOSA pode flertar com ideologia no subtexto, porém no final não passa de uma despretensiosa adaptação de quadrinhos. Divertir é o mínimo, ter conteúdo pode ser um diferencial.

Continuação direta de “Esquadrão Suicida”, o filme começa com sua protagonista, Arlequina (ou Harley Quinn) tentando se reinventar após o término do relacionamento com o Coringa. Como indica o subtítulo, o que ela quer é uma emancipação. Em seu caminho, todavia, um inimigo em comum acaba aliando-a a três outras mulheres para proteger uma garota em perigo.

(© WARNER BROS. / Divulgação)

O filme é da Arlequina do começo ao fim, o que tem dois lados. De positivo, uma atuação mais uma vez ótima de Margot Robbie, que transmite a sensação de se divertir no papel. De negativo, contudo, há uma insistência em narração voice over o filme todo, recurso narrativo extremamente pobre. Nos minutos iniciais, quando a protagonista explica seu backstory ao espectador, a ferramenta faz sentido, mas seu emprego intensivo (conduzindo a trama e até mesmo comentando-a) fragiliza o texto de Christina Hodson.

A despeito da falha mencionada, o roteiro tem virtudes simbólicas, com destaque à naturalização do que é natural, sem usar a ideologia de maneira panfletária. Uma das mulheres teve um relacionamento lésbico, o que é dito sem alarde. Por sua vez, o vilão tem manifestações homoafetivas sutis com seu capanga principal. Isso não é assunto do filme, mas compõe o seu olhar sobre a realidade. Além disso, o subtexto feminista permeia a trama (por exemplo, ao pontuar um homem que levou o crédito por algo que não fez), quando não está no próprio texto sobre sororidade. Embora não haja muito didatismo na matéria, é evidente que a revolta de Harley ao ouvir mulheres afirmando que ela precisa de um “macho alfa” serve como estímulo à reflexão.

É provável que seja nessas sutilezas simbólicas que “Aves de rapina” tenha seus maiores predicados. A construção narrativa é singela, mas funcional, exceto em algumas inverossimilhanças, que são, todavia, aceitáveis (como o tempo que Harley teria arranjado para colocar patins, o que é ironizado pelo próprio filme e se torna uma solução criativa). O que é realmente negativo no texto é a construção dos coadjuvantes: Máscara Negra (ou Roman Sionis) é um vilão genérico que Ewan McGregor se esforça, sem êxito, para dar personalidade (beirando o caricato); Canário Negro (ou Dinah Lance) não tem arco dramático próprio (pior: participa de um deus ex machina que poderia ter sido facilmente evitado, mas que recebe uma explicação insatisfatória), ainda que Jurnee Smollett-Bell defenda o papel com vigor convincente; e Caçadora (ou Helena Bertinelli) é provavelmente a pior do grupo, seja por aparecer flagrantemente desconexa da trama, seja pela atuação terrível de Mary Elizabeth Winstead (marcada pela expressão vazia). Não é à toa que, com mais espaço (leia-se, personalidade e arco dramático), Rosie Perez e Ella Jay Basco tenham conseguido um desempenho melhor (mas aquém do desejável e, é claro, inferior ao de Robbie).

Cathy Yan sugere no prólogo que vai conduzir a obra de maneira infantilizada. Não é esse o caso: há muita violência gráfica, não tanto apelando para o gore (ao contrário, há uma cena em que é usada uma arma não letal), mas por golpes duros que são bem explícitos (logo no começo, nas pernas do motorista, por exemplo). Além de serem boas as coreografias, alguns cenários são bem explorados para dar algum diferencial às lutas, como nas celas da delegacia e no parque de diversões. Outro acerto é uso eventual da linguagem dos quadrinhos, como a pausa para mostrar o nome da personagem e a queixa em relação à Arlequina.

O longa é leve em sua linguagem, sem critérios muito rígidos, como ao usar slow motion na ação e fast motion na elipse (no clube do Ronan). Os efeitos visuais eventualmente falhos (como na cena da explosão) passam despercebidos diante do dinamismo da montagem e da fotografia escurecida, parecendo suja e com cores foscas. As cores são, em geral, bem escolhidas (o fundo vermelho do clube não é à toa), assim como os figurinos. Destacam-se a elegância de Ronan (que não é aproveitada narrativamente) e o uso não apelativo do vestuário feminino (mesmo quando Canário Negro está com uma calça justa, o que chama a atenção é a luta, não o corpo da atriz). No design de som, é de se lamentar que canções com grande significado (“It’s a man’s man’s man’s world” e “Hit me with your best shot”, dentre outras) corram o risco de passar despercebidas em razão do excesso de trilha musical (que é quase ininterrupta, soando agressiva aos ouvidos e não conseguindo ser dosada na mixagem).

O título só é efetivamente explicado no desfecho, há um número musical breve, mas claramente desnecessário, uma também dispensável referência a “Esquadrão Suicida” e uma inútil fala (não cena, fala) pós-créditos. São excessos que poderiam aproximar “Aves de rapina” ao seu péssimo antecessor, mas que são ofuscados por uma modesta proposta razoavelmente bem executada. É melhor divertir com algum conteúdo que não ter conteúdo algum para divertir.