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“AZUL PROFUNDO PERMANENTE” – O mar desse mundo

Filme assistido na plataforma da Supo Mungam Films (clique aqui para acessar a página da Supo Mungam Plus).

Prisioneiro das ondas que quebram nos sedutores planos finais de AZUL PROFUNDO PERMANENTE, sinto a necessidade imperativa de esticar as pernas, me virar no sofá da sala e cair imediatamente no sono. Posso, então o faço: rapidamente, as memórias de Barbara e as memórias de Greta se embaraçam com as minhas, seus mares são meus córregos; me pego meio-ciente, em delírio-acordado com os sons que sobem pela janela e os sons das ondas que ainda vêm da televisão; enfim durmo, com todas as letras, e sonho com os rostos de incontáveis conhecidos que há muito não vejo.

Azul profundo…” – o primeiro e único longa-metragem que a escocesa Margaret Tait dirigiu em vida, mais de quatro décadas depois da realização de seu primeiro curta – é de uma maestria formal que emerge com uma naturalidade rara, raríssima. Uma singularidade que é a todo instante onírica, realista e documental, tudo ao mesmo tempo. Nada foge desses 80 e poucos minutos, desses planos precisamente delimitados. Poucos filmes são tão, digamos, autossuficientes (penso, sem ponderar muito sobre qualidades e defeitos, em outros filmes de tamanha – porém sutil e contida – completude: o “Flames” de Adolfo Arrieta, “O Baile dos Bombeiros” de Miloš Forman, recentemente o grande “A Mulher Que Fugiu”, de Hong Sang-soo).

(© Supo Mungam Films / Divulgação)

Três coisas são importantes na história que Tait está contando: que é uma história sobre uma família, que essa família é de artistas, e que essas artistas são mulheres. Os motores de “Azul Profundo Permanente” são conversa e memória: no presente, Barbara (Celia Imrie), fotógrafa, conta a Philip (Jack Shepherd), seu amante, sobre Greta (Gerda Stevenson), sua mãe, que era poeta e morreu pelas mãos do mar; e Greta conta a seu marido Jim (James Fleet), ou conta para si mesma, sobre a sua mãe, que morrera da mesma forma. O mar, em todo seu fascínio e enormidade, beleza e horror, é a sombra dessa família. Barbara diz que é como pai: da terra, da cidade.

Para as mulheres de Tait, não há diferença entre julgamentos morais, estéticos e políticos. O que fazem é o que são. Greta escreve poemas não-lidos, mas é também esposa e mãe. Admira enormemente o amigo Andrew (Sean Scanlan), que é pintor e não é marido nem pai. “Tem que ser possível”, ela exclama quando ele diz ser inconcebível coexistirem vida doméstica e vida artística. Andrew cria seu mundo: seu pequeno apartamento tem o que é necessário, suas roupas manchadas de tinta, suas paredes estão permeadas de rabiscos de figuras humanas – todas as quatro paredes, como quatro bordas das molduras de seus quadros. Greta não pinta, ela escreve. Quando é mãe fala uma língua, quando compõe os seus poemas fala outra. Andrew pinta o seu mundo, ela escreve para transcender o seu, porque quer sentido nos tatos e não nos objetos. Escreve com uma voz para calar a outra. Sua mãe morrera encurralada pelas águas, atacada; Greta morreu andando em direção ao mar, dormindo ou acordada, pouco importa. Naufragou como marujos sob o canto das sereias.

Barbara não escreve nem pinta, fotografa. Barbara é Tait, é evidente. Suas câmeras são as mesmas, têm as mesmas vontades. Quando Philip acha que o que ela quer, ou precisa, é de filhos, ela o refuta prontamente. Há medo da história, de repetições, de destinos comuns. Barabara quer ler os poemas da mãe, quer ver os quadros de Andrew. Tait filma como se sob efeito de todas essas coisas também: seus planos emoldurados, as ondas de seus mares como se rimadas. Ambas tentam encontrar uma voz, um lugar, alguma identidade. Como mulheres, como artistas. Suas câmeras não criam mundos como os pinceis de Andrew, e não transcendem a matéria como as palavras de Greta. A câmera faz coisas sozinha, faz parte do mundo, deste mundo.

O cinema é daqueles sem coragem para criar coisas puramente novas, para dar luz. É também daqueles sem coragem para fugir de todas as coisas, para naufragar. Mas, em outras linhas, isso também quer dizer que é daqueles como coragem para ver este mundo, dispostos a ele, ao real, a memória, aos sonhos. Escolher estas ou aquelas palavras é interpretar as lágrimas no rosto de Barbara ao fim do filme, assistindo Philip se misturar com luzes, fumaça e música.

O mar de Tait regressa para se despedir, e saber filmar o mar é das qualidades mais louváveis: rochas, conchas, algas marinhas, restos de corda que as ondas trouxeram e partiram sem. Cobertos pela água, revelados pela maré. É como sonhar com o passado, como lembrar do futuro.