“BABENCO – ALGUÉM TEM QUE OUVIR O CORAÇÃO E DIZER: PAROU” – Enquadramentos da vida
Héctor Babenco foi um cineasta argentino naturalizado brasileiro, que foi responsável por títulos como “Carandiru” e “O beijo da mulher aranha“. Ele morreu em 2016, vítima de enfarte enquanto lutava contra um câncer há mais de trinta anos. Apesar de sua morte constituir parte de BABENCO – ALGUÉM TEM QUE OUVIR O CORAÇÃO E DIZER: PAROU, o documentário articula a vida e a arte na trajetória do artista, mostrando temática e esteticamente como sua existência foi ligada ao cinema.
Nada melhor que sua esposa Bárbara Paz para dirigir a obra, voltada para relatos marcantes sobre as memórias, amores e reflexões do diretor durante a fase mais debilitada de sua saúde. Desde o princípio, ela demonstra como a narrativa será: em dois momentos em que se fala sobre enquadramento e foco, sentimos que a proposta é selecionar parte da realidade enquanto outras estão desfocadas sem o mesmo destaque. Assim, ganha corpo a concepção de que nenhum filme é objetivo, nem os documentários, pois são construções mediadas por um olhar subjetivo. Nesse caso específico, a perspectiva define um estilo documental poético e pessoal.
Os primeiros registros visuais escolhidos por Bárbara Paz revelam o desejo de evidenciar como a vida do marido foi expressivamente artística. O gotejar demorado das bolhas de um soro de hospital traduzem a calmaria próxima do fim, ao passo que a agitação vigorosa das ondas do mar evocam os sintomas turbulentos da doença – ambos os planos, reconstruídos com o mesmo efeito através de outras combinações com o passar do tempo, reforçam a percepção lírica da narrativa. Além disso, a diretora demonstra um domínio narrativo refinado, porque o diálogo sobreposto à tela escurecida da abertura e as primeiras imagens do mar vistas da janela de um quarto de hotel apresentam um paralelismo extremamente poderoso com o desfecho – são dadas, portanto, indicações de como o artista busca transcender mesmo em tempos adversos.
A poesia não só transborda das simbologias imagéticas como também de outros registros estéticos. Esse aspecto sensível é ampliado pela inserção de momentos íntimos do casal, filmados espontaneamente pela mulher quando eles estão juntos e se tocam carinhosamente em casa ou no hospital. Embora as passagens em que Babenco está mais fragilizado pelo câncer pudessem impor emoções ao espectador, a diretora se protege desse risco sabendo como enquadrar as cenas para dar tons gradualmente mais sentimentais – é uma travessia orgânica até se envolver com a figura do cineasta pelo que se pode sentir sobre ele. Alinhando tudo isso, ainda há a fotografia em preto e branco que potencializa traços poéticos e intimistas da abordagem estilística, em especial quando trechos dos filmes do realizador são mesclados ao documentário.
Como a produção se desenrola integrando o artístico ao pessoal, ter o próprio relato de Babenco refletindo sobre si mesmo é muito expressivo. A partir da combinação entre suas narrações em voice over e das imagens, as reflexões do homem ganham um peso ainda maior, que permite atravessar questões importantes de sua vida: as lembranças da infância, a autodenominada visão de mundo anarquista, o desenraizamento de um argentino de origem residente no Brasil, o flerte com a marginalização social e as concepções do fazer cinematográfico. Este último aspecto, por sinal, assume um viés metalinguístico no qual o homem examina de onde vem as sensações para contar histórias, suas relações complexas com a ficção e o poder da arte de dar vida (por isso, é tão emblemática a sequência em que ele parece ser invadido por flashes de seus trabalhos).
É bastante significativo como a montagem também contribui para conferir sentidos expressivos aos fragmentos das obras do artista. Estes instantes específicos dialogam diretamente com as narrações em voice over simbolizam estados variados do cineasta: por exemplo, “O beijo da mulher aranha” evoca metaforicamente sua doença; “Carandiru” sintetiza seu olhar pelos desamparados; “Pixote – A lei do mais fraco” escancara sua preocupação com a realidade desigual do Brasil; “Lúcio Flávio, o passageiro da agonia” desafia as estruturas sociais vigentes; e “Meu amigo hindu” simboliza o desenrolar de sua vida fragilizada pela doença (ou como diz, é um filme sobre sua morte). Logo, as inserções de sua carreira não fazem parte de uma mera listagem tradicional, mas são demonstrações de como sua identidade e seu cinema podem se articular.
O encadeamento das sequências também se beneficia pela não linearidade da narrativa. Desse modo, o fluxo das imagens não segue uma ordem cronológica ao transitar entre momentos poéticos, registros casuais com a esposa, questionamentos sobre si mesmo, interações com suas obras e trabalhos nos sets de filmagem – essa fragmentação acentua ainda mais a dimensão pessoal de Babenco, principalmente os efeitos da doença percebidos na perda da força muscular e da fluidez da voz. Somos então levados a percorrer a reconstrução de uma vida fluida, complexa e marcada pelo vaivém temporal e por eventos contraditórios. Captar algo assim se torna mais possível graças às potencialidades de um documentário que utiliza a linguagem para ressaltar o personagem como um sujeito criativo e artístico.
Definir os impactos expressivos do enquadramento – selecionar o que se pretende de uma realidade específica – torna o filme mais do que uma homenagem. Além disso, Bárbara Paz enquadra Héctor Babenco como uma figura que não consegue conceber a vida sem arte nem negar o poder vital da arte. Assim, a cena em que Bárbara Paz atua dançando se comunica tanto com o filme em si quanto com o relacionamento com o marido e o desfecho dá outra leitura ao título “Babenco – Alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou” – uma leitura que demonstre que a arte pode reimaginar a morte a partir dos anseios da vida.
Um resultado de todos os filmes que já viu.