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“BARDO, FALSA CRÔNICA DE ALGUMAS VERDADES” – Egolatria de um cineasta [46 MICSP]

Com BARDO, FALSA CRÔNICA DE ALGUMAS VERDADES, Iñárritu apresenta ao público o seu pior trabalho. O filme é a síntese da egolatria de um diretor que se assume como autoindulgente, pedante e que usa a técnica para mascarar ora o vazio de sentimento, ora a expressão unidimensional de ideias esparsas.

Silverio Gama é um jornalista famoso por sua carreira como documentarista e está prestes a receber um prêmio por seu último trabalho. Em uma revisitação das suas origens, de seus pensamentos e de eventos de seu passado, Silverio faz uma viagem onírica para talvez encontrar a paz que almeja.

(© Netflix / Divulgação)

O filme tem predicados que não merecem ser ignorados. Daniel Giménez Cacho encanta no papel do protagonista, aliando sua introspecção e timidez ao deleite face a um universo onde tem o controle. Esse deleite é expresso pelos recursos técnicos empregados com maestria por Alejandro G. Iñárritu: plongée para representar a superioridade (e a arrogância) de Silverio face a Luis, filmagem em hipnóticos planos-sequência que estimulam uma sensação de transe, uso de lente grande-angular para traduzir um estranhamento do que é exibido, e assim por diante. Não há dúvida, Iñárritu tem uma habilidade ímpar em sua mise en scène.

Com “Bardo”, todavia, essa habilidade se revela absolutamente inócua. Em uma jornada de realismo fantástico, os minutos iniciais são de intenso surrealismo, algo que se aproxima, por exemplo, do que ele havia feito em “Birdman”. Dessa vez, todavia, o surreal é pretexto para um exibicionismo vazio no qual o diretor esbanja técnica em uma grande produção sem grande significado. O longa tem um design de produção bastante criativo, com cenários encantadores e coerentes com a proposta, mas a atmosfera criada de nada serve se o seu conteúdo é raso.

No roteiro escrito por Iñárritu e Nicolás Giacobone, há uma amplitude temática que torna superficiais todas as “algumas verdades” presentes na obra (que é uma “falsa crônica” por ser fictícia e surreal). É apontada a modernidade líquida nas menções a youtubers entrevistados e às constantes mudanças “a cada tweet”, mas isso não tem maiores repercussões. As verdades estão lá, vomitadas da maneira mais preguiçosa possível em uma verborragia entediante: “a vida é apenas uma série de eventos sem sentido”, “às vezes o melhor para você não é o melhor para nós”, “as pessoas se vão, mas as ideias ficam”. Como resultado, não há reflexão alguma sobre esses assuntos, que são apresentados como se o espectador estivesse aprendendo a viver e como se a sabedoria do texto fosse valiosa.

A relação entre o México, os EUA e o próprio protagonista é o que reduz ainda mais a qualidade do longa. Por vezes, é engraçada a maneira sarcástica como o roteiro satiriza uma colonização simbólica. Quando, todavia, a referência é à colonização real (leia-se, histórica), o didatismo é assustador por tratar o público como incapaz de compreender (mais do que conhecer) esse processo. O viés adotado passa a ser de confissão por supostos pecados: Silverio discute com os filhos sobre a imigração, revela algum arrependimento por não honrar (talvez ignorar) as origens mexicanas e ainda assim sente uma necessidade gritante de chamar os EUA de casa.

A autoindulgência é incômoda. A hipocrisia de Silverio é flagrada pela filha: como ele pode elogiar a segurança e o transporte público dos EUA (sobretudo comparativamente) se não anda pelas ruas (apenas com motorista particular)? Da mesma forma, o filho questiona: se o México é tão bom como Silverio afirma quando visitam o país, por que decidiu morar nos EUA e levar a família? Iñárritu tenta esboçar um sentimento ambíguo – seu, evidentemente – em Silverio, uma mescla entre remorso e orgulho, mas coloca seu protagonista – e ele mesmo – como um patético mártir incompreendido. Com os pés pregados e os braços abertos, Silverio surge imageticamente como Jesus crucificado. Mas o cineasta simula uma consciência disso tudo no contraponto feito por Luis, cuja desaprovação ao protagonista serve de crítica pronta ao próprio filme.

Exemplo da singeleza (em sentido negativo) no lado emocional da película está na cena do bebê na praia: a despeito do conteúdo e da música de teor dramáticos, a cena não é capaz de comover tanto porque não houve uma construção narrativa que conduza a essa comoção quanto porque o prazer de Iñárritu no mea culpa nada convincente ofuscam qualquer conteúdo periférico. Após quase três horas, o filme se torna um manifesto não de defesa do México nem de crítica aos EUA, mas de egolatria de um cineasta que desperdiça o seu talento.

* Filme assistido durante a cobertura da 46ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.