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“BEGINNING” – A imagem em seu essencial

BEGINNING é uma experiência audiovisual peculiar, que demanda do público outra postura diante da tela. A coprodução franco-georgiana trabalha as incógnitas de uma protagonista que jamais se revela completamente e a temporalidade de uma narrativa minimalista centrada na observação. Portanto, ao longo de suas pouco mais de duas horas, a obra estende o poder hipnotizante das imagens para possibilidades específicas de estudo de personagem e de construção autoral da arte.

(© Wild Bunch Distribution / Divulgação)

Tudo se inicia quando moradores de uma comunidade da Geórgia queimam o local onde uma congregação de Testemunhas de Jeová praticam sua fé. Após esse fato, Davi tenta obter as filmagens de câmeras de segurança da hora do ataque enquanto pretende reerguer sua igreja. Ao mesmo tempo, sua esposa Yana se sente abalada não apenas por conta desse ato de intolerância, mas também por uma crise emocional que a atormenta de formas variadas.

A cena de abertura já é significativa para apresentar as escolhas estilísticas da diretora Dea Kulumbegashvili. Em parceria com o diretor de fotografia Arseni Khachaturan, eles definem que o filme deve ser composto por diversos longos planos estáticos, como se vê no momento de ataque aos religiosos – a câmera está fixa na entrada da igreja registrando a chegada dos fiéis e o início do culto, até que bombas inesperadas são atiradas no lugar. Apesar de ser uma cena intensa, o estilo de decupagem da cineasta faz com que o restante da narrativa seja minimalista e tenha um ritmo lento, capaz de levar o espectador a observar cada fotograma e interpretar suas possibilidades de significado. Por vezes, a ideia pode ser surpreender com a aparição abrupta da violência (a abertura e o estupro em um rio), por outras, pode ser fazer um convite a preencher os vazios e as dúvidas deixados pelos personagens (especialmente, a relação da protagonista com o marido e o filho).

O sentimento de incompletude, por sinal, é utilizado de modo expressivo pela realizadora para não criar uma caracterização simplificadora de Yana. Em geral, produções dedicadas a estudos de personagem costumam oferecer pistas explícitas sobre como essa figura seria, mas a diretora trata sua protagonista como um mistério que não parece ser desvendado em nenhum momento – afinal, não seria impossível conhecer plenamente uma pessoa? Os elementos que mais oferecem chaves de leitura para ela são as interações com três figuras masculinas: o marido David, com quem não tem um relacionamento sadio, como se nota nas reações dele à violência sexual sofrida por ela; o detetive, algoz que a aterroriza através de uma atitude dominadora e do suposto interesse de investigar o ataque à igreja; e o filho Giorgi, com quem não se entende tão bem em face às tarefas de educá-lo e protegê-lo dos perigos do mundo.

Em função das diferentes opressões que sente (a maternidade, o casamento e a violência sexual), é bastante evocativo um diálogo que tem com David após o incêndio. Yana diz que está sentindo que algo está prestes a acontecer em sua vida, embora não saiba precisar se é o início ou fim de algo. Essa sensação de crise com a fragilização de referenciais ou desorientação de seu lugar no mundo é captada com uma intensidade própria pela atriz Ia Sukhitashvili, livre o suficiente para dar sua própria visão a uma protagonista misteriosa, de quem os silêncios alimentam dúvidas sobre suas ações. Nesse sentido, os longos planos estáticos adquirem outra potencialidade: ampliar os momentos em que a mulher busca suspiros de alívio (o longuíssimo tempo deitada na relva) e tenta se purificar (o banho preparado após o estupro).

Com o decorrer da narrativa, Dea Kulumbegashvili se apropria desse tipo de enquadramento com múltiplos efeitos sem que possa soar como um mero fetiche. É possível ser atraído pela força das imagens, que são compostas por muitas ações filmadas com grande profundidade de campo, como é o caso do plano em que a igreja arde em fogo ao longe; ser perturbado pela sequência do estupro devido à perspectiva de observador assumida pela câmera; e ser provocado a querer respostas mais claras de Yana quando ela se posiciona de costas para a câmera, principalmente após uma revelação dramática na penúltima cena. Outra razão que faz essa abordagem não ser fetichista é a sensação de mistério evocada pelos planos abertos, responsável por tornar o público um observador que investiga qualquer detalhe revelador da jornada da protagonista.

A procura por indícios mais elucidativos de uma história nada convencional aumenta os impactos dos movimentos de câmera. A diretora trabalha as imagens no que possuem de essencial por si mesmas, dispensando artifícios técnicos alheios às suas características – as imagens são convertidas em fotogramas que valorizam mais o efeito emocional, a luz e o som do que o deslocamento do olhar da câmera. Assim, os quatro travellings suaves são os únicos movimentos realizados, que provocam reações dramáticas expressivas: ao invés de fazer isso em diálogos de Yana com o marido e com o detetive (nesses momentos, somente um dos personagens é enquadrado para deixar em suspenso os comportamentos da outra pessoa), a realizadora move o olhar para aumentar o drama de uma situação, especialmente quando Yana ouve apreensiva a gravação de uma conversa comprometedora.

Se a personagem principal parece ser movida pela indefinição quanto ao início ou o fim de algo, a narrativa como um todo abraça esse conceito aos poucos. A partir dessa ideia, ficam as indagações se o desfecho de Yana inicia ou encerra uma passagem em sua vida; se o espectador sabe mais ou menos sobre aquelas figuras em comparação ao começo do filme; e se as cenas começam e terminam dentro de uma duração alegórica dos rumos do que aparece em tela. Não seria exagero falar em alegoria, pois as duas últimas cenas incorporam o aspecto religioso já presente na trama aos efeitos sensoriais da conclusão com uma reflexão provocativa sobre culpa e morte. Enfim, “Beginning” é uma estreia poderosa de Dea Kulumbegashvili na arte encantadora das imagens.