“BELA VINGANÇA” – Há vingança, mas não subversão
Em entrevista ao Los Angeles Times, a diretora de BELA VINGANÇA disse que, em 2018, lançou no Festival de Sundance um curta* sobre os diferentes modos pelos quais as mulheres podem ser assustadoras e maléficas. Posteriormente, com “Promising young woman” (nome original do longa), sua ideia era a de um filme de vingança, mas sobre como uma mulher real a realizaria. Na prática, seu filme é bem menos revolucionário do que ela pensa.
Traumatizada por um evento que ocorreu há sete anos, Cassie tem o hábito de ir a casas noturnas e fingir estar bêbada para ser levada por homens que querem se aproveitar do seu estado aparente. Quando ficam a sós, ela entra em ação, revelando estar sóbria. Tudo pode mudar quando ela reencontra Ryan, com quem estudou na faculdade, que está disposto a fazê-la se apaixonar por ele.
A sinopse sugere algo bem romântico, o que não é a realidade do filme, a despeito de Emerald Fennell afirmar que sua obra é também uma comédia romântica. A cineasta, contudo, tem um problema conceitual na obra, pois ele tenta ser muita coisa e acaba deixando a desejar. De fato, a veia cômica de Bo Burnham faz com que Ryan seja engraçado e seu envolvimento com Cassie é um romance evidente – como se extrai da péssima sequência em que toca “Stars are blind”, canção de Paris Hilton de 2006. Entretanto, isso é uma fração da película e uma parcela bastante óbvia da trajetória de Cassie.
A protagonista é interpretada por Carey Mulligan, que explora ao máximo seu potencial camaleônico para se apresentar inicialmente ébria e, não muito depois, surpreendente sóbria, solidamente desanimada, progressiva e relutantemente apaixonada e, por fim, perspicazmente focada (na vingança). O visual colabora muito para concretizar os diferentes perfis da personagem, que, todavia, não seria tão convincente se não fosse o ótimo trabalho de Mulligan. Figurino, penteado e maquiagem têm a ambiguidade necessária para que Cassie pareça uma mulher indefesa ou um perigo inesperado, a depender da sua conduta, quando age contra os predadores sexuais. Diversamente, no seu cotidiano, as cores alegres (amarelo e verde, branco e rosa etc.) do vestuário servem para ocultar sua faceta racional vingativa.
A excelência técnica, contudo, não se mantém em outros aspectos, sobretudo na direção de arte de Liz Kloczkowski, que é ruim nos cenários fechados – a sala em que Cassie conversa com Madison (aparentemente, seria a casa de seus pais) tem uma decoração infantilizada, ao passo que a residência de Ryan parece um hotel, tamanha a incompreensível impessoalidade. A trilha musical de Anthony Willis tenta ser inventiva, como nas versões lentas de “It’s raining men” e “Toxic” (esta, instrumental), o que nem sempre funciona (a primeira é mais funcional que a segunda).
A narrativa em si deixa a desejar quando encarada como um todo. As cenas em que Cassie está com Jerry ou Neil, por exemplo, são muito boas; o mesmo não ocorre quando o backstory da protagonista fica claro. A partir desse momento, que não tarda a acontecer, descobre-se o que a motiva a agir, mas surgem diversos outros questionamentos. Não se sabe quem ela era antes do que aconteceu com Nina, tampouco por que ela se relaciona mal com todas as pessoas (exceto a chefe). Ainda que seja possível preencher essas lacunas pela imaginação (através de suposições), elas não deixam de ser lacunas. Tampouco se sabe a razão do momentum de Cassie, isto é, por que ela não iniciou seu plano antes – certamente não por impossibilidade, pois muitos dos envolvidos provavelmente seriam encontrados antes por redes sociais (como de fato ocorreu, aliás).
“Bela vingança” tem cenas de tensão real, como a que Cassie conversa com a reitora Walker – a omissão de certas circunstâncias torna-se mola propulsora do suspense. O texto tem inverossimilhanças (destacando-se a gravação no celular de Madison e a dose cavalar de suspensão da descrença exigida no desfecho), porém elas não prejudicam a experiência como um todo. Isso ocorre muito mais em razão da mensagem desnecessariamente generalista e da atmosfera volúvel do longa, que deveria ser mais intenso no thriller do que na comédia romântica. Fica clara a intenção de fazer um filme grandioso e, principalmente, subversivo, talvez chocante. Não é o caso. Não há surpresas, não há sobressaltos, mas uma ideia boa que não foi aproveitada em todo o seu potencial.
* O nome do curta é “Careful how you go”, que é também o título do livro que Cassie está lendo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.