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“BIGMAN” – Aceitação ao invés de superação [46 MICSP]

Tudo leva a crer que BIGMAN é um feel good movie clichê que se inicia com um trauma envolvendo uma criança (o que facilmente comove), se desenvolve com a vitória sobre pequenos obstáculos em meio a doces risadas e se encerra com a alegria da superação desse trauma. Porém, este não é um filme de superação, mas de aceitação, não se propondo a aliviar o drama do qual parte.

Dylan e seu amigo Youssef sonham em se tornar jogadores de futebol profissionais. Certo dia, Dylan sofre um acidente e perde a mobilidade das pernas. Enquanto se adapta à nova vida, ele assiste a Youssef se destacando nas partidas e busca diversas formas de prosseguir no sonho.

(© Rinkel Film / Divulgação)

Job Tichelman e Camiel Schouwenaar não escrevem um roteiro que elimina o evento trágico de Dylan, pelo contrário, esse evento se sobrepõe ao garoto a despeito de suas criativas tentativas de voltar a jogar futebol. Ele tenta ser goleiro e afirma que “ainda manda bem”, mas é forçado a perceber que o gol é grande demais para ele em sua nova condição. A cena, por sinal, é um dos melhores momentos da direção de Schouwenaar: após um êxito em uma pequena quadra, a filmagem em plano médio dá a entender que haverá uma repetição, mas um plano aberto escancara a realidade da qual Dylan tanto foge. Todas as suas ideias e tentativas acabam se revelando vãs porque sua criatividade não supera a paraplegia. Ele pode praticar esportes, inclusive futebol, mas não como fazia anteriormente.

Esse choque de realidade imposto ao protagonista se traduz em episódios de insensibilidade desconfortáveis até mesmo o espectador – afinal, não se espera que um médico diga a uma criança naquela situação, de uma forma direta e sem rodeios, que ela nunca mais poderá jogar. Ironicamente, o público precisa aceitar que se trata de uma obra sobre a aceitação, não sobre a vitória em relação a dissabores.

Nesse contexto, há três núcleos com os quais Dylan se relaciona. A escolha de Maik Cillekens para o papel é excelente, pois ele capta a essência da personagem. O primeiro núcleo, então, é a relação de Dylan consigo mesmo. Antes do acidente, ele é uma criança alegre, empolgada e confiante em um futuro como futebolista. Depois, no período inicial de tratamento, prevalece a apatia, que, todavia, se transforma facilmente em esperança em razão do que parece ser uma mínima movimentação nas pernas. Dylan é obstinado e rejeita a nova condição, preferindo o esforço de subir as escadas de casa à adaptação facilitadora promovida pelos pais. Ele se envergonha da nova situação, se escondendo dos amigos no transporte escolar e expulsando Yous por força das consequências do descontrole urinário. O segundo núcleo é justamente o de Youssef (Anouar Kasmi, também boa escolha), com quem a relação com Dylan não é unidirecional. Quanto mais a situação parece definitiva, mais afastados eles ficam, até surgir um esboço de inimizade, fruto da infantilidade de ambos (o protagonista chega a ficar com ciúmes do pai). Não há desenvolvimento da relação de Dylan com a mãe, porém com seu pai a ambiguidade das suas interações (enquanto pai e enquanto técnico) dá ensejo a atritos.

O filme de Schouwenaar tem todos os elementos básicos de um feel good movie, destacando-se a trilha musical alegre e sequências elípticas agitadas e empolgadas. A direção tem excelentes momentos, sobretudo a cena do acidente, que ocorre fora do campo e é seguido de uma movimentação de câmera inventiva (mais precisamente, é uma metáfora para um mundo de cabeça para baixo). Outras escolhas recaem no óbvio, como o vestuário de Dylan (uso de cores frias e referências escritas ao futebol e à competitividade). O maior deslize é provavelmente a participação de Soufiane Touzani como um espírito de subjetividade mental cuja função motivadora (em um discurso dolorosamente piegas) sequer combina com o filme. Apesar desse considerável deslize, “Bigman” consegue comover – e o faz justamente porque não converte drama em fantasia. Não se trata de um longa revolucionário, mas que surpreende por não transformar um acontecimento triste em um conto de fadas. É possível ressignificar o acidente, mas Dylan precisa aprender que sua vida nunca mais será a mesma.

* Filme assistido durante a cobertura da 46ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.