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“BIZARROS PEIXES DAS FOSSAS ABISSAIS” – O maravilhoso mundo da experimentação

Em tese, BIZARROS PEIXES DAS FOSSAS ABISSAIS tem uma trama convencional. Observados no todo, os acontecimentos remetem a uma jornada do herói: a protagonista busca algo precioso e consegue aliados e inimigos no percurso. No entanto, a escolha sobre como contar essa história se afasta do tradicional e do realista. Se o conteúdo pode ser racionalmente reconhecido, a narrativa pode ser sentida a partir da abstração e da imaginação.

(© Sessão Vitrine Petrobrás / Divulgação)

Na trama, uma jovem tem um superpoder de metamorfosear partes de seu corpo em animais. Ela procura cacos de um vaso e conta com a ajuda de uma tartaruga e de uma nuvem. Em seu caminho, vários seres se colocam como obstáculos, também interessados nos cacos. A princípio, não é possível saber o que realmente a personagem deseja, o motivo nem os propósitos dos antagonistas. Com o passar do tempo, a aventura ganha um sentido pessoal e mostra o valor do tesouro a ser achado.

Os personagens da animação são os primeiros sinais de que a experiência cinematográfica obedece a uma lógica própria, muito mais voltada para a liberdade da imaginação do que para os limites da razão. E os dubladores potencializam as características de um trio inesperado. Natália Lage dubla a heroína dotada de superpoderes incomuns, como fazer a bunda se transformar em um gorila e liberar em seus braços milhares de vacas, enquanto tem problemas estomacais que a impedem de se alimentar pela boca. Rodrigo Santoro dubla a tartaruga que sofre de transtorno obsessivo, que a obriga a organizar milimetricamente qualquer objeto e ter ações repetitivas. Guilherme Briggs dubla a nuvem desgarrada das demais, que sofre de incontinência pluviométrica e sente vergonha de chover se alguém estiver próximo.

Além do trio principal, a jornada em si também guarda uma liberdade criativa muito expressiva. O diretor Marcelo Fabri Marão é um animador reconhecido e premiado por seus projetos anteriores, como “Chifre de camaleão” e “Engolervilha“, que apresenta uma clara visão autoral na forma como explora diferentes possibilidades narrativas e visuais. Nas sequências em que a tartaruga expõe seu transtorno, os ruídos diegéticos ou o silêncio são suficientes para transmitir o desconforto da personagem e gerar humor para o público. Nas cenas em que a protagonista enfrenta os vilões, estes são variados em termos conceituais (seres humanos desenhados com rabiscos simples, criaturas longilíneas sem natureza definida e rinocerontes espaciais) e os confrontos ganham uma energia caótica devido à trilha sonora e ao usos dos superpoderes. Além disso, o cineasta transita por diferentes técnicas de animação, como o 2D tradicional feito a partir de desenhos a lápis no papel e do full animation para captar os movimentos das lutas.

Decididamente, a unidade estilística depende da experimentação de cores, espaços e da própria história. Conforme a procura pelo cacos se desenvolve, fica mais evidente a criatividade da direção de arte para distinguir a casa onde mora o avô da jovem e os outros ambientes. Nessa residência, tudo que acontece com o homem é retratado com traços típicos de um cartum e em preto e branco. Nos demais cenários, os traços são detalhados com maior complexidade sem abandonar as cores fortes e o caráter fantasioso. Nessa linha, a narrativa cria versões particulares de Nilópolis no Rio de Janeiro, Araraquara em São Paulo e Sarajevo na Sérvia com toques, respectivamente, cartunescos, coloridos e degradados por ruínas. Em certos momentos, a trama em si ocupa um papel periférico, pois coerência lógica ou sequência clara de eventos importam menos em uma jornada nonsense de humor absurdo. É nesse contexto que piadas sobre o metrô carioca e liberação de sucos de graviola sem açúcar cabem.

Marcelo Fabri Marão não dá todas as respostas nem quando a descoberta do significado dos cacos do vaso reunidos ocorre. Qual é a origem dos superpoderes da heroína? Qual é o interesse dos rinocerontes pelo que o vaso recomposto revela? Tais perguntas continuam como incógnitas porque a atenção do diretor está em outras questões. Por mais que a revelação do objetivo da protagonista seja através de uma cena expositiva, existe uma força dramática na sua essência que ressignifica o que se tinha visto até então e trata dos mistérios da memória. As aparições do avô, aparentemente desconexas da trama geral, ganham um sentido trágico. Os riscos de perder um dos cacos e de acontecer algo violento com a tartaruga são concebidos em uma sequência em que a variação da razão de aspecto do quadro é expressiva, acentuando ou reduzindo a tensão. E a relação entre a busca da jovem e a condição de seu avô é representada pela escuridão que preenche o quadro enquanto apenas se escuta a voz da personagem.

O tesouro procurado seria uma espécie de “cura”. O grande conflito gira em torno da relação entre memória e esquecimento, um mistério que não pode ser totalmente desvendado. E a protagonista se comporta como uma heroína dotada de poderes mágicos. Levando cada detalhe em consideração, a animação compreende que o desfecho da aventura também precisa ser imaginativo, fantástico e abstrato, mais sentido do que racionalizado. Por isso, Marcelo Fabri Marão cria um clímax maravilhoso a ser apreciado e experimentado em cada sentido humano. A busca chega até às fossas abissais onde vivem peixes bizarros. Esta é a oportunidade de o filme experimentar visual e sonoramente. Uma escuridão profunda toma conta do quadro. Espécies animais de cores, formas e movimentos variados desfilam pela tela. Alguns momentos de humor se sucedem. Outras situações de perigo surgem. O movimento pelo mar profundo parece uma viagem pelo espaço e pelos órgãos celestes. Silêncio profundo e emergência energética da trilha sonora se alternam. A jovem, a nuvem e a tartaruga parecem bailar por um universo de beleza ímpar.

Bizarros peixes das fossais abissais” pode iniciar sua trama em uma dimensão familiar dentro da jornada do herói, mas a cada segundo que passa, a animação se distancia das convenções e das expectativas dessa abordagem. Basta observar o que a conclusão do terceiro ato reserva. O confronto final exige novamente uma dose considerável de imaginação porque a jovem, a tartaruga, a nuvem e o avô são mobilizados a utilizar o que não estariam acostumados a fazer. A tartaruga precisa deixar a ordem um pouco de lado. A nuvem precisa lidar com seus próprios receios. O avô precisa dar vazão a uma característica até então desconhecida. E a jovem precisa aceitar que a “cura” tão esperada pode não ser mágica quanto se sonhava. Então, pode ser necessário desfrutar das histórias que sejam possíveis enquanto forem possíveis dentro de uma simplicidade que combina com o retorno da simplicidade dos traços da animação.