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“BLOODSHOT” – Divertido apesar dos pesares

Originalmente, o filme BLOODSHOT era uma HQ de sucesso e popularidade do selo Valiant, criada em 1992 por Kevin VanHook e Yvel Guichet e reformulada por um reboot em 2012. Na última versão, ganhou o tratamento e a trama que podem ser vistos na adaptação cinematográfica comandada por Dave Wilson e estrelada por Vin Diesel. Chegando à tela grande, a obra sofre da indecisão entre valorizar o roteiro crítico sobre o militarismo norte-americano e investir nas sequências de ação.

(© Sony Pictures / Divulgação)

Após o reboot, Ray Garrison se tornou um militar que morre após cumprir uma operação na África, ao lado da esposa. Surpreendentemente, acorda em uma instalação científica tendo sido ressuscitado e aprimorado com nanotecnologia pelo cientista Emil Harting, o que o permite ter habilidades de regeneração e força sobre-humana. Entretanto, suas memórias foram apagadas. Quando as recupera, entende o que, de fato, aconteceu com ele e parte em busca de vingança.    

Como boa parte da narrativa trata de aspectos sci-fi, uma das primeiras necessidades é estabelecer o universo fantasioso no qual os nanites são compostos biomecânicos capazes de oferecer poderes especiais ao organismo em que estão. Não apenas é explicado o funcionamento e os efeitos que tais substâncias promovem no protagonista, como também nos demais soldados que compõe o grupo liderado por Harting, dentre eles KT, Jimmy e Tibbs (todos vítimas da guerra e reconstruídos pela tecnologia) – os efeitos visuais ajudam na tarefa de tornar esses elementos críveis e suas aplicações compreensíveis para o espectador, já que é possível acreditar no desenvolvimento daquele aparato científico. O mesmo não vale para a caracterização de Ray que, inicialmente, é colocado como um super-herói que não possui ameaça à altura de desafiá-lo, apesar da atuação de Vin Diesel dentro da proposta ser eficiente: transita entre o humor do sujeito comum antes do ressurgimento e a inexpressividade emocional quando é movido pelo nanites.  

Antes que o problema da invencibilidade do personagem seja mais grave, o filme passa por uma reviravolta ao revelar uma surpresa que apresenta um desafio para ele. Nesse instante, instaura-se um conflito que, por essência, é coerente com os dilemas das Forças Armadas, do militarismo e do papel dos soldados nas guerras, porém o roteiro falha na introdução e no aprofundamento dessas questões: diálogos expositivos entregam simplificadamente o plot twist, pouco antes de o filme mostrar que poderia construí-lo visualmente; e poucas linhas de texto abordam rápida e esporadicamente – como se bastasse – temas complexos e importantes referentes à manipulação de militares de baixa patente pelos superiores, à falta de liberdade de escolha, à lucratividade de aparatos bélicos, a ganância de empresários e cientistas na criação de artefatos destrutivos e rentáveis e o impacto arrasador do belicismo sobre os indivíduos. O caminho tomado não é muito diferente daquele seguido por “Contra o Tempo”, sendo este mais habilidoso na construção das críticas.   

Se por um lado a densidade não é o forte do filme, os momentos em que o entretenimento menos profundo é priorizado funcionam graças às sequências de ação compatíveis com a proposta. Algumas podem até se apoiar em clichês (o slow motion recorrente e a montagem de cortes frenéticos), mas nada consideravelmente prejudicial para o divertimento buscado. Há uma escala crescentemente grandiosa de absurdo “galhofa” que, na medida certa, não se leva a sério e, ainda assim, entrega uma adrenalina específica para cada encenação criada: por exemplo, o confronto dentro de um túnel às escuras iluminado apenas por tochas de luz azul e vermelha (em sintonia com as cores relacionadas aos nanites) que se aproveita do espaço e das limitações da visualização para gerar tensão; e o clímax do terceiro ato que se inicia com lutas corporais bem coreogradas em guindastes (sabendo como usar o cenário através da câmera lenta e das habilidades especiais potencializadas dos personagens) e termina em uma resolução em que os efeitos visuais novamente acertam em criar um enfrentamento poderoso e libertador.

Oscilando entre a diversão e a fragilidade também estão os personagens secundários, sendo alguns eficientes dentro da proposta de ação sci-fi e outros reduzidos a clichês. Além da segurança de Vin Diesel em viver o protagonista, KT é a única dentro da equipe que possui camadas dramáticas, cabendo a Eiza González transmitir os conflitos entre o desejo de fazer o certo e a necessidade de fazer aquilo que garante sua sobrevivência; e Wigans é um bem-sucedido alívio cômico vivido por Lamorne Morris como um técnico em informática engraçado por conta de sua falsa modéstia diante da sagacidade em criar e desvendar códigos. Os demais membros do time, entretanto, não saem do lugar-comum do cientista ganancioso e do militar vilanizado e antipático; assim como o técnico em informática Eric é simplesmente rebaixado por quem duvida de seu trabalho e insinua o tamanho pequeno de seu órgão sexual.

“Bloodshot” chega aos cinemas atravessando duas facetas que nem sempre conversam bem entre si. Quando tenta ser mais inteligente do que realmente é acaba refém dos clichês batidos, de alguns personagens vazios e de um roteiro esquemático incapaz de tratar da questão dos obstáculos ao livre arbítrio. Quando procura ser uma diversão descompromissada oferece um universo bem construído para a ficção científica e momentos de ação empolgantes que, vez ou outra, estabelecem situações criativas. Ao final da sessão, o gosto deixado não é amargo porque essa segunda dimensão qualificada é a responsável por encerrar o filme.