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“BLUE JEAN” – Conflitos interiores e exteriores

Margareth Thatcher foi primeira-ministra do Reino Unido entre 1979 e 1990. Conhecida como a “Dama de Ferro”, ela foi responsável por implementar o neoliberalismo na economia e lidar com a Guerra das Malvinas contra a Argentina. Em torno do seu nome, uma memória muito negativa também se desenhou e se prolonga até hoje, em virtude do caráter conservador de seus mandatos e de medidas repressivas contra certos setores sociais. Entre os exemplos, atuou de forma rígida contra sindicatos de mineiros grevistas, pretensões separatistas da Irlanda do Norte, torcedores de futebol vistos na totalidade como hooligans e, como mostra BLUE JEAN, a comunidade LGBTQIA+. Nesse contexto, o filme mira o olhar em uma protagonista atravessada por conflitos contra si mesma e com o mundo ao redor.

(© Festival Filmelier no Cinema / Divulgação)

A personagem em questão é Jean, uma professora de Educação Física em um colégio do ensino básico da Inglaterra. O ano é 1988 e o governo de Margareth Thatcher realiza uma agressiva campanha contra a população LGBTQIA+, alegando ser necessário bloquear ações que supostamente incentivariam os jovens nas escolas a se tornarem homossexuais. Jean é lésbica e mantém em segredo sua orientação sexual, fazendo-a levar uma vida dupla entre o trabalho e o período no qual se relaciona com sua namorada e se diverte com amigas em um bar gay. A chegada de uma nova aluna a faz repensar as escolhas da sua vida.

Jean divide seu tempo entre os horários de trabalho na escola treinando as alunas para jogarem netball, a relação com amorosa com Viv e o convívio com a família de sua irmã. A princípio, o público não sabe tantos detalhes pessoais da mulher para além de sua homossexualidade, já que a diretora Georgia Oakley enfoca a rotina diária da protagonista como uma série de obrigações cumpridas metodicamente sem grande brilho. Mesmo os momentos de prazer partilhados com a namorada e com as amigas seguem a mesma ideia, pois são vividos por uma pessoa extremamente cautelosa e contida que nem se entrega completamente ao prazer. O comedimento é tão forte que toma conta da decupagem das cenas, filmadas com uma austeridade meticulosa em cada enquadramento rigoroso que registra Jean à distância. Como sensação geral, é possível perceber que até a câmera tem dificuldade de acessar a intimidade da professora. Além disso, a iluminação predominantemente azulada colocada pelo diretor de fotografia Victor Seguin possui um tom melancólico que complementa o estado inicial da personagem.

O excesso de moderação se revela imediatamente a partir da atuação de Rosy McEwen. No primeiro ato, a atriz mantém uma postura tensa e enrijecida de quem interpreta alguém que toma cuidado com todas as suas atitudes com a preocupação de não ter a orientação sexual descoberta na escola e na família. No máximo, os olhos anunciam o medo diante de qualquer mínima possibilidade de ter a intimidade exposta publicamente. A discrição de Jean não se resume apenas à decisão pessoal de não se assumir perante aos familiares e colegas de trabalho, mas também à opção de não se posicionar abertamente pelos direitos sociais da comunidade LGBTQIA+. Curiosamente, a personagem está cercada por notícias, comentários e manifestações relativas ao conservadorismo do governo Thatcher, ao preconceito contra pessoas queer ou padrões sociais impostos de forma sutil (ou nem tanto). Assim, Jean escuta programas de TV ou de rádio que falam sobre a legislação contrária aos homossexuais, assiste a um programa televisivo de namoro que estipula um modelo de feminilidade, observa um cartaz na rua que anuncia a importância de valores tradicionais e ouve conversas de colegas sobre a vulnerabilidade dos jovens.

Na maioria dessas situações, Jean não reage nem se manifesta com receio de sofrer alguma retaliação ou recriminação no trabalho ou na família. A decupagem traduz visualmente a discrição de uma mulher que não se posiciona abertamente sobre os direitos dos homossexuais, pois a personagem e as fontes sonoras que comentam a intolerância do período não dividem o mesmo plano. Com a chegada de Lois à escola, a dinâmica segura da protagonista é colocada em xeque e conflitos internos e externos a Jean se manifestam. A nova aluna tem problemas de interação com as colegas da turma, em especial Siobhan, por conta de sua orientação sexual. Lois também é lésbica e passa a frequentar o mesmo bar que seria refúgio da professora, o que gera dilemas para a protagonista: a outra faceta de sua vida será revelada pela jovem? A relação professora e aluna será afetada? A adolescente estaria realmente se aproximando com interesse romântico pela mulher mais velha? Jean poderia ajudar Lois de alguma forma?

Enquanto as dúvidas perseguem Jean e a narrativa apresenta momentos ambíguos na relação professora e aluna, Georgia Oakley cria um mosaico diverso para as personagens femininas. A diretora insere traços complexos para a protagonista e trabalha diferentes posturas de mulheres da comunidade LGBTQIA+. A partir do contato com seus familiares, o passado de Jean é mencionado e os espectadores conseguem compreender a preocupação de manter sua vida amorosa em segredo. E, graças a Viv e Lois, o filme aborda perfis variados de mulheres lésbicas e distintos da própria protagonista: Viv é bem humorado, expõe sua orientação sexual sem temores, inclusive ironizando quem a observa com expressão inquisidora, e assume claramente a luta pelos direitos da comunidade; já Lois ainda está se conhecendo, algo natural para a adolescência, e parece disposta a experimentar seus desejos em um mundo novo mesmo que tenha uma personalidade fechada e rompantes emocionais diante de injustiças.

Diferentemente das demais personagens, Jean é cautelosa, contida emocionalmente, preocupada com o sigilo de sua intimidade e alheia a causas sociais mais amplas. Entretanto, o rumo dos acontecimentos coloca desafios e interrogações para a professora que sugerem a necessidade de tomar uma posição firme. Os efeitos dessas pressões são graduais e começam em cenas mais estilizadas ou através de recursos visuais expressivos, como o momento em que ela imagina um treino incomum de netball e o zoom-in na sequência em que um close mostra sua expressão durante uma conversa dos colegas professores. Mais adiante, este zoom-in, que demanda uma ação de Jean, encontra uma rima visual com um zoom-out feito em uma lanchonete onde conversava com Viv, que lamenta a atitude enfim tomada. E após um conflito ocorrer entre Lois e Siobhan na escola, o redemoinho de emoções, incertezas e cobranças leva Jean a experimentar um misto de apatia e impotência visto na atuação de Rosy McEwan e na trilha sonora invasiva.

Pensar na própria segurança e preservar sua identidade ou arriscar-se como orientadora de Lois e militante explícita na luta pelos direitos das mulheres homossexuais? São essas dúvidas que preenchem conflitos internos quanto a que pessoa Jean seria para se sentir satisfeita com si mesma e externos quanto ao tipo de relação que teria com a sociedade. É importante perceber que “Blue Jean” não exige que sua protagonista distorça quem é para lidar com esses conflitos, mas nem por isso é possível dizer que mudanças não ocorram em seu arco. Mesmo que as transformações não sejam revolucionárias, Jean se modifica ao anunciar quem é em seu círculo íntimo (sentindo os impactos libertadores da ação) e a perspectiva do público se transforma ao entender que a personagem pode ter um papel social relevante ainda que discreto. Ao final, seguir sua rotina não precisa ser, necessariamente, uma decisão alienante nem egoísta.

* Filme assistido na cobertura do Festival Filmelier no Cinema, de 2023.