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“BOLSHOI” – Embates já vistos [1 FCR]

O choque entre senescência e juventude, frustração e sonho e professor e aluno não é novidade – nem ao menos no contexto do balé. BOLSHOI não tem sequer uma fração do potencial para se tornar um clássico como “Os sapatinhos vermelhos”, não tem a efervescência de “Cisne negro”, o encanto de “Billy Elliot”, a realidade de “O corvo branco” ou a energia pulsante de “Let’s dance”. É mais do mesmo, com poucas virtudes e alguns defeitos dignos de nota.

Yulia Olshanskaya vem de família paupérrima e mora no interior da Rússia, mas sonha em dançar no Teatro Bolshoi. Ela teve a sorte de encontrar como primeiro mentor um ex-bailarino talentoso, porém sua segunda professora não pretende tornar fácil o seu caminho na escola de balé.

(© Roskino / Divulgação)

No visual, Valeriy Todorovskiy tem alguns acertos, como a luz das janelas dando uma aura angelical nos ensaios, o monocromático cinza (simbolizando o quão chata é a atividade) da sala onde Yulia treina com Vladimir e os bancos e a camiseta em cor vermelha na cena em que Yulia conhece o rapaz de óculos escuros. Logo no prólogo, a sala ampla com um espelho e um teto de vidro são versões imagéticas do olhar introspectivo e da visibilidade inerentes à dança. Entretanto, decepciona a abordagem musical. Ainda que a música do grand finale seja belíssima, o destaque é maior para a mise en scène, na qual, em câmera subjetiva e slow motion, as dançarinas aparecem ensaiando e se preparando para um momento incomparável. A trilha musical deixa a desejar porque é tímida e por faltar um piano clássico (para combinar com a temática). A cena de transição da protagonista da infância para a idade adulta é bom exemplo de como uma música pode fazer a diferença, sendo coerente com o simbolismo gráfico (quando criança, com apenas uma mala; adulta, com várias, mostrando o quanto ela aprendeu).

O roteiro de Anastasiya Palchikova, que partiu do enredo criado por Ilya Tilkin e pelo diretor Valeriy Todorovskiy, comete um equívoco gravíssimo ao não justificar a trajetória de Yulia. Exceto no mencionado prólogo (no qual ela continua ensaiando quando as colegas já saíram da sala), não é demonstrado um esforço extraordinário da sua parte; ao revés, ela não leva a atividade tão a sério quanto algumas colegas – uma delas abdica dos naturais romances que podem surgir (sem falar da vida sexual), outra passa por uma espécie de automutilação (ao precisar apertar os seios), ao passo que Yulia atrasa no ensaio mais importante, se nega a dar um salto baixo (afirmando “meu salto é assim”) e não se sacrifica quando comparada às demais bailarinas.

Existe, entretanto, um sacrifício pelo qual Yulia precisa passar: o afastamento da família. Na verdade, o papel das famílias das bailarinas é exibido como fundamental desde a infância. Enquanto a protagonista vai com seu professor, as demais estão acompanhadas pelas mães, que as orientam e se alegram ao ouvir que as filhas foram elogiadas, por exemplo. No caso da heroína, a pobreza é enxergada como indignidade e catapulta um plot twist que subverte a expectativa do final e cria um quarto ato. O sonho de Yulia teve, de fato, um alto custo, que foi abandonar a família. Permanece, contudo, uma questão relevante: o que ela tem de especial?

Se ela não se dedica tanto quanto as outras bailarinas, ela deve ter algum talento a mais. De acordo com Galina Beletskaya (Alisa Freyndlikh, a melhor do elenco), ela pode não ter a estabilidade da sua principal concorrente, mas tem “alegria e emoção” ao dançar. A experiente professora vai além, diz que ela é sua “melhor aluna de todos os anos”. Se é assim, por que Lyudmila Sergevena (Valentina Telichkina) não enxerga da mesma forma? Existe uma subtrama de um relacionamento tormentoso entre as duas professoras (no primeiro teste de Yulia, enquanto uma queria chamar a próxima, a outra bate palmas para que a menina dance) e é perceptível que, para Sergevena, o comportamento deve ser avaliado (e não apenas a dança em si). Todavia, se Yulia fosse tão boa, seu papel como Aurora seria indiscutível, não?

Quando criança, Yulia (interpretada por Ekaterina Samuilina) é cheia de si e respondona (afirma que Lyudmila tem braços grandes como resposta à crítica de que teria corpo grande); quando adulta (vivida por Margarita Simonova), revela maior insegurança (como ao perguntar para Mitya se é possível alguém se apaixonar por ela). Ainda assim, a vulnerabilidade de Galina é muito mais tocante e melhor trabalhada na narrativa ao constituir um elo entre as duas e causar uma instabilidade na trama. Porém, esse elemento é desperdiçado pela fragmentação narrativa, pois o script exagera em vaivéns desnecessários e nenhuma progressão narrativa. O desenrolar do texto acaba sendo anticlimático várias vezes, com retrocessos ou avanços que minam o potencial que o filme claramente tem (Aleksandr Domogarov, por exemplo, é desperdiçado por um papel de coadjuvante meramente instrumental e sem arco dramático próprio – no máximo, um esboço).

Por fim, o filme abraça diversos embates, como a juventude sonhadora versus a senescência frustrante – no primeiro caso, o jovem irmão de Yulia, que quer se mudar para Moscou; no segundo, Antoine Duval (Nicolas Le Riche), desanimado pela aposentadoria iminente em razão da idade – e a aluna insubordinada versus a professora rígida (Yulia e Galina). Para quem gosta de mais do mesmo, talvez o filme interesse.

* Filme assistido durante a cobertura do 1º Festival de cinema russo.