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“BORN IN FLAMES” – Conciliação em chamas

Filme assistido na plataforma da FILMICCA.

Fazer um filme político vai além do tema escolhido e de seu conteúdo social ou ideológico. É preciso também traduzir formalmente o caráter político da obra, utilizando a linguagem a favor do olhar que se pretende lançar sobre o mundo. Como arte das imagens em movimento, o cinema precisa incorporar a política às escolhas visuais para que seu discurso não se reduza a uma mensagem transmitida apenas pelo texto. Afinal, como evitar o risco de enfraquecer a escolha pela publicização de perspectivas contra-hegemônicas a partir do uso de uma linguagem neutralizada pela indústria de massas? BORN IN FLAMES propõe uma resposta a esse questionamento, incendiando debates e contradições de tema e estilo.

(© Filmicca / Divulgação)

Em um exercício de imaginação utópica (ou distópica), os EUA celebram os dez anos de uma revolução que marcou a ascensão ao poder de uma democracia socialista. A guerra de libertação promete uma sociedade mais justa e igualitária com uma economia reestruturada, mas nem todos estão satisfeitos com os rumos do processo. Adelaide Norris fundou o Exército das Mulheres, organização em prol pela luta de igualdade de gênero e pelo fim da violência misógina. Ao mesmo tempo, duas rádios independentes propagam ideias e mobilizações contra o machismo, o racismo e as discriminações de gênero. Quando a ativista é detida e assassinada na prisão, as organizações feministas intensificam os protestos e revoltas.

Nada pode ficar imune ao processo de destruição e reconstrução em busca de uma sociedade justa e igualitária ou de uma arte emancipadora. A diretora Lizzie Borden começa pela linguagem do filme, um híbrido de estéticas e temporalidades que transita por fronteiras. De início, a contextualização da diegese é feita através dos recursos de um documentário, como o registro visual de um programa jornalístico de TV, a textura de imagens de arquivo, as entrevistas e a narração em voice over. Assim, o público é apresentado à revolução socialista, à celebração de dez anos do evento e ao Exército das Mulheres com suas pautas e estrutura interna. A princípio, a abordagem documental sugere a representação de um recorte do presente. Na execução concreta, a sugestão é fluida. A imaginação de um país socialista pode apontar para uma utopia, enquanto a percepção das mazelas para as mulheres pode significar uma distopia. Em qualquer caso, o documentário aborda uma projeção de futuro. De modo complementar, pode aludir ao presente do lançamento do filme, marcado pelo medo de uma guerra nuclear e pelo avanço dos conservadorismos sociais frente aos movimentos negro e feminista.

Além das características da narrativa como um todo, Lizzie Borden reconfigura os meios de comunicação como estratégias de conscientização popular e atuação político-revolucionária. Mesmo que o telejornal se inicie dentro da visão do novo status quo, do partido socialista comandado por homens brancos, a cineasta problematiza esse veículo e se apossa dele como uma expropriação simbólica. Não é possível ocultar os preconceitos e desconhecimento de um grupo supostamente esclarecido e preocupado com a superação do capitalismo, já que condenam identidades de gênero queer e estranham a existência de organizações horizontalizadas. Com o tempo, a decupagem do documentário televisivo parece ser tomada pelas mulheres ativistas, que assumem para si a tarefa de explicar como pensam e atuam. Enquanto isso, as estações de rádio Regazzo e Phoenix são lideradas por Isabel, vivida por Adele Bertei, e Honey, interpretada por Honey, como espaços de resistência ao sistema e promoção da luta de gêneros, raças e classes oprimidas. As canções são importantes para tal objetivo, como “Born in flames” da banda The Red Krayola. Mais tarde, a ocupação de uma estação de rádio para interromper o pronunciamento presidencial e colocar um manifesto em seu lugar se revela outro ato político pela linguagem artística.

Outra forma de incendiar e por em xeque os paradoxos de projetos políticos alternativos é escancarar, sem concessões, suas limitações ou problemas. A partir de Adelaide Norris, vivida com a força que a liderança da personagem pede por Jean Satterfield, a narrativa evidencia que nenhum governo socialista estaria completo se menosprezar as demandas suprapartidárias de movimentos sociais. Em diversos momentos, a permanência de uma mentalidade sexista, racista e elitista em imagens de protestos por direitos iguais no mercado de trabalho, anúncios televisivos carregados de mensagens subliminares sobre o papel serviçal das mulheres e sequências de violência de gênero (a tentativa de estupro a uma mulher por três homens na rua). Quando a mobilização pela melhoria das condições de vida é realizada sem esconder os erros do governo vigente, outros conflitos surgem e são tematizados pelo roteiro. O Exército das Mulheres e as demais organizações são chamados de contrarrevolucionários e considerados tanto incapazes de desfrutar dos avanços em relação aos governos anteriores quanto responsáveis pela emergência violenta de setores reacionários.

Construir um filme político também depende da abertura para o contraditório, mirando a crítica para o próprio grupo, identidade e ideologia. Embora as personagens principais contestem a natureza socialista daquele governo, a implantação do socialismo real é colocado em crise para que sejam evidenciadas as lacunas do projeto político. Por exemplo, as mulheres brancas do partido socialista criticam as mulheres negras envolvidas nas pautas pelo feminismo sob a alegação de ser uma luta separatista que enfraquece a transformação econômica da realidade. Em outros momentos, o Exército das Mulheres não recebe mais adesão porque algumas militantes questionam os métodos de luta, algumas sendo favoráveis e outras contrárias às ações armadas. Lizzie Borden direciona, então, o interesse para as contradições de modelos revolucionários que formam uma nova elite, marginalizam vários sujeitos sociais, mantêm visões de mundo discriminatórias e recusam autocríticas. Logo, o perfil social do homem branco, heterossexual e moralista nos costumes ainda predomina na constituição de um novo regime político.

Quando Adelaide Norris se organiza para tentar a militarização do Exército das Mulheres e sofre as consequências de desafiar o partido, as discussões sobre política se tornam cada vez mais diretas na narrativa. A frontalidade já poderia ser observada desde o primeiro ato, já que a trama e as escolhas formais lidam com aspectos sensíveis sobre a revolução e a luta feminista sem se desviar de suas implicações mais ou menos preocupantes quando estas surgem. É o que acontece, principalmente, na descrição de lutas políticas que não podem ser hierarquizadas ou separadas em dimensões distintas. A interseccionalidade é fundamental, pois integra os embates de raça, gênero e classe por um mundo melhor que contemple pessoas de diferentes condições socioeconômicas, características étnicas e orientações identitárias. Os privilégios da branquitude são assinalados pelas diferenças de condições sociais para as mulheres brancas do partido e para as mulheres negras militantes. E os discursos difundidos nas estações de rádio destacam a importância da união e negros, latinos e outros grupos marginalizados por uma luta coletiva de transformação.

As chamas referenciadas no título do filme seguem no processo de destruição para a reconstrução sob bases absolutamente disruptivas. A estética cinematográfica, os veículos de comunicação, as relações entre Estado e sociedade e as contradições dentro de um projeto político não são os únicos elementos a serem derrubados ou questionados para produzir uma obra política. “Born in flames” também coloca em primeiro plano a impossibilidade de conciliação entre grupos ideologicamente opostos, que vivem em realidades antagônicas com interesses heterogêneos. Não se trata de individualização nem moralização dos conflitos, mas de enfrentamento de um sistema opressor pautado em privilégios, exploração e desigualdade ainda que sejam diferentes daqueles vistos no capitalismo. E para enfrentar isso são necessárias ações diretas, algo que o filme declara sem concessões nem receios contra linguagens hegemônicas, relações de poder, temporalidades e simbolismos.