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“BOY ERASED: UMA VERDADE ANULADA” – Deveria ser assistido por todos

Alguns filmes merecem ser vistos apenas pela relevância da sua mensagem. Nessa perspectiva, BOY ERASED: UMA VERDADE ANULADA é automaticamente um dos filmes mais importantes da temporada, quiçá da década. Com o crescimento de vozes conservadoras cujo discurso retrógrado dissemina desinformação e incentiva discriminação, são sempre bem-vindas as produções que desconstroem as nocivas lendas que seduzem as mentes mais frágeis.

Baseado no livro “Boy erased: a memoir”, em que Garrard Conley conta sua experiência real, o longa acompanha Jared, um jovem gay filho de um pastor de uma igreja batista, submetido a um programa de terapia de reorientação sexual. O roteiro foi escrito por Joel Edgerton, que também dirige a película e interpreta Sykes, o terapeuta responsável pelo programa.

Cartaz de “Boy erased: uma verdade anulada

O maior acerto de Edgerton foi imprimir ao longa realidade (afinal, a história é real) sem sensacionalismo. O espectador não é jogado violentamente em uma doutrinação simplista, pois a ideia não é convencer pelo raciocínio, mas pela emoção. Para quem acredita (ingenuamente, é claro) na conversão da sexualidade, argumentos racionais não são suficientes. Ciente disso, o filme mostra que nem mesmo métodos radicais são capazes de modificar a orientação sexual de uma pessoa – na melhor das hipóteses, causam um enorme trauma psicológico. O discurso de amor e empatia cede lugar à aceitação.

Jared é um jovem inteligente e sonhador que respeita os valores cristãos transmitidos por seu pai, mas que não pode mudar a sua própria natureza, mesmo se esforçando. Lucas Hedges acerta ao dar à personagem fragilidade na medida certa, sem recair em estereótipos e mostrando que Jared é vítima vulnerável diante de pais que se recusam a aceitá-lo. Sem exagero ou insuficiência, o ator reafirma seu talento. Russell Crowe interpreta o pai do garoto de maneira contida, ao passo que Nicole Kidman empresta força descomunal a Nancy, mãe de Jared. A longa sequência em que o jovem é confrontado por eles é inicialmente protagonizada por Crowe, para depois Hedges ganhar destaque. Enquanto isso, Kidman brilha nas sutilezas (seu olhar na cena do “convite” ao programa é de uma eloquência invejável), reservando os melhores momentos para o final, quando representa um vulcão entrando em erupção após um longo período adormecido. Edgerton atua bem em um papel bastante sóbrio, mas faz com que o trio Hedges-Kidman-Crowe tenha maior destaque.

Personagens secundários, quando não têm uma cena (ou mais) de maior destaque (é o caso de Henry, vivido por Joe Alwyn, partícipe de uma sequência que toma um rumo inesperado), representam pontas soltas (mesmo não sendo um ator tão gabaritado, Xavier Dolan é subaproveitado). Britton Sear vive Cameron, personagem fundamental enquanto engrenagem narrativa e uma das poucas que tem um arco dramático próprio. O nome Cameron, por sinal, remete a “O mau exemplo de Cameron Post“, protagonizado por Chloe Grace Moretz. Toda a contundência presente em “Boy erased” é ausente no filme, que tem a mesma temática.

A direção de Edgerton é correta, sem tomar para si os holofotes, até porque a história e o trio principal são a verdadeira potência da obra. A composição visual é minimalista, porém eficaz para simular o local onde ocorre o programa como uma prisão: os funcionários se comunicam por rádio e os jovens nunca ficam sozinhos, os recintos são sempre fechados e o vestuário dos “pacientes” é praticamente uniforme. A roupa com a qual Jared costuma ir (camisa lisa branca e calça cáqui de sarja) retrata a monotonia da experiência e constitui exemplo do bom trabalho de figurino de Trish Summerville. Outro exemplo é o vestuário de Nancy, que inicia com cores pálidas (sempre com algum elemento da cor branca), porém adota o roxo (reforçado pelo tom cereja de seu carro) na cena de maior pujança (e depois a camisa de onça é bem simbólica do momento da personagem).

Em termos de ritmo, há uma crescente perceptível cujo clímax dramático não se confunde com o clímax narrativo. No primeiro caso, o protagonista é um coadjuvante; no segundo, é o próprio Jared. De todo modo, o longa é impecável para expor o espírito do programa, baseado na humilhação e na tortura psicológica e muitas vezes física. O vigor que se espera da temática está lá: existem várias normas de comportamento (da postura ao vestuário) e o método para garantir fidelidade ao “tratamento” é deveras violento e traumático.

Boy erased: uma verdade anulada” deveria ser assistido por todos. Não se trata apenas de um filme muito bom, mas socialmente indispensável. Aceitação não é ideologia, é senso de humanidade. Não é fácil dialogar com quem acredita na “cura gay” (dentre outras lendas estupidamente absurdas). Porém, se o cinema pode colaborar de alguma forma, que seja comunicando ideias que possam ajudar os que sofrem pela ignorância (e/ou preconceito) alheio. Se uma bandeira está sendo levantada, é a da dignidade.