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“GAROTO DOS CÉUS” [“BOY FROM HEAVEN”*] – Filme fingido [46 MICSP]

O que torna BOY FROM HEAVEN diferente da maioria dos filmes que tratam do mesmo assunto – qual seja, a relação entre religião e Estado – é o ponto de vista da influência. Geralmente, a abordagem adota a perspectiva da interferência daquela neste, o que o longa faz é o contrário. Por outro lado, sua estrutura engessada de filme de espionagem dissolve o que poderia torná-lo memorável.

Filho de um pescador, Adam recebe a oportunidade de estudar na Universidade Al-Azhar, no Cairo. Após o falecimento repentino do Grande Imã, o mais importante líder religioso da Universidade, Adam é escolhido para ser um informante do Estado acerca do que acontece na instituição, correndo riscos pessoais.

(© Atmo Production / Divulgação)

Partindo-se da premissa de um Estado confessional, o que há no longa não é uma religião que interfere no Estado, mas um Estado que interfere na religião. À primeira vista, o resultado é o mesmo, porém a ideia aqui é estabelecer um thriller ambientado no mundo islâmico. O longa é pouco acessível nas minúcias dessa realidade, circunstância que apenas reforça que o seu interesse real é no thriller – ou, mais precisamente, no filme de espionagem.

O mundo comum do protagonista é de uma vida pacata ajudando o pai na pescaria, não havendo grandes aspirações a priori. A ida a Al-Azhar parece ser o incidente incitante, mas na verdade é o recrutamento de Adam como espião (palavra aqui entendida em sentido amplo) que constitui essa etapa estrutural. As cenas que precedem a sua aproximação a outro espião são um pouco tediosas, mas o filme melhora muito com essa aproximação – e, a partir daí, apenas cresce. O acesso à universidade seria a oportunidade para Adam mudar de vida, porém o aprendizado que ele recebe acaba sendo por meios espúrios cuja legitimidade ele questiona.

Na amizade com Zizo (Mehdi Dehbi), percebe-se que existe nos garotos uma ânsia por liberdade, representada pela bebida e pela festa. É fácil notar uma pressão religiosa muito intensa no cotidiano, já que, por exemplo, mesmo quando Karl Marx é abordado em aula, o tema é a sua visão sobre a religião. Zizo percebe que “a alma de Adam ainda é pura”, prevendo que ela será “corrompida”, nas suas palavras, por força das suas experiências vindouras. Sem opções, Adam se vê acorrentado a uma disputa velada entre os religiosos egípcios e a elite política. Considerando ser ele uma peça de menor relevância no tabuleiro, o perigo de descarte é iminente.

O que torna Adam uma personagem interessante é que mesmo seus princípios dão lugar a um instinto de sobrevivência, como ocorre em relação ao que faz com Raeed (Ahmed Laissaoui) para não ser descoberto. Pouco importa se gosta de Raeed ou de Soliman (Sherwan Haji), a única maneira de sobreviver no terreno em que aterrissou é utilizar todos os aparatos possíveis e imagináveis. O principal deles é a sua própria inteligência, que impede as “pontas soltas” que o general não quer deixar. Adam chama a atenção também porque seu intérprete, Tawfeek Barhom, transita com maestria nas etapas pelas quais a personagem passa. No começo, ele é tímido e gentil, revelando-se ingênuo perante o coronel Ibrahim (Fares Fares) – seu primeiro encontro no café é até mesmo engraçado. Quase não parece o mesmo Adam que enfrenta o coronel mais adiante (no mesmo café, encarando-o com seriedade e inconformismo), tampouco o mesmo que se apavora diante da abordagem do major-general Sobhy (Moe Ayoub).

As cenas que ocorrem no café demonstram sutilezas da direção de Tarik Saleh, ausentes, contudo, em seu roteiro. Desde o começo Adam e Ibrahim conversam como se fossem desconhecidos, em mesas separadas e simulando falar ao celular. Com a mudança da condição de Adam na rede montada por Ibrahim, seu posicionamento se altera de modo que, diferentemente de antes, olham para direções opostas e ficam de costas um para o outro, como se já não mais houvesse o mesmo alinhamento ou, talvez, a mesma deferência. É verdade que o cineasta nem sempre revela a mesma astúcia na direção: a cena envolvendo um rato e uma cobra, por exemplo, é um grito sobre o inevitável engolimento de quem é mais vulnerável.

É no roteiro, porém, que Saleh vende um produto mascarado: sob a maquiagem de um contexto inovador, no fundo, seu filme é apenas mais um filme sobre uma pessoa que se infiltra em um grupo para fornecer informações a outro grupo. A cartilha desse tipo de narrativa é seguida à risca (armações, flagras, ascensão, perigo, surpresas etc.), mas não seria exagero enquadrá-la como clichê. “Boy from heaven” não é ruim, mas finge ser o que não é: original.

* Filme assistido durante a cobertura da 46ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, oportunidade em que seu título foi apresentado como “Boy from heaven“. O título “Garoto dos céus” veio com a sua estreia, em 19/01/2023.