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“BRATAN” – A criança abandonada que abandona a geofagia [46 MICSP]

Da união entre um feel good movie na superfície e um drama lastimável internamente resulta BRATAN, de 1991. O longa diverte e tem boas piadas com uma personagem bem carismática, mas menciona conflitos políticos e tem como mola propulsora um drama familiar que não deve ser ignorado – cuja conclusão é um amadurecimento precoce.

Desde a separação de seus pais, Faruh e Asamat (chamado pelo primeiro de “Panqueca”) são criados pela avó. Quando Faruh, o mais velho, decide buscar a própria independência, ele pega um trem com Panqueca, para, sem aviso, deixá-lo com o pai. É o início de uma viagem que pode não ter o resultado que eles pretendem.

(© 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo / Divulgação)

O lado feel good movie de “Bratan” está no humor inocente depositado no longa. A maior parte das piadas fica com Panqueca (Timur Tursunov), um menino de enorme carisma que transmite naturalidade em seu jeito pueril e doce (como quando pede um beijo). Em razão da idade, ele pratica atitudes cujo perigo não considera (como ao ligar o trem), mas o resultado disso é a comédia leve proposta pelo filme – e que funciona melhor que o humor envolvendo adultos (como a queda do pedalinho).

Também nessa perspectiva o filme funciona como road movie, de modo que o diretor Bakhtyar Khudojnazarov enaltece mais as desventuras dos meninos do que a situação precária em que se encontram. É nesse contexto que surge Nabi (N. Begmurodov), mais um alívio cômico que um adulto tutelando os irmãos. Nabi ainda participa bastante de cenas de comunicação não verbal (o flerte no trem, a comida que leva a Panqueca…), nas quais a ótima trilha musical emerge para encaminhar o ritmo do longa. A escolha das músicas é muito boa porque elas são hábeis em acompanhar o ritmo irregular do filme, que acelera nas elipses na estrada, mas reduz nas paradas.

Esse lado descontraído e infantil entra em conflito com o lado tenso e adulto da obra. Antes de tudo, há um aspecto político: o filme é de 1991, ano em que o Tajiquistão se tornou independente da URSS e ano precedente a uma guerra civil. O registro histórico se faz presente em uma cena isolada, que, todavia, tem o condão de dar peso ao momento – certamente Panqueca e provavelmente Faruh não tinham conhecimento que o apedrejamento era reflexo da turbulência no cenário político. Ambos acabam sendo vítimas de um panorama amplo do qual sequer participam diretamente.

Diversamente, a participação direta dos irmãos se dá no drama familiar da ausência do pai. Na inexistência de uma figura paterna, é Faruh (Firus Sasaliyev, quase tão bom quanto Tursunov) que assume essa posição (inclusive no lar, a despeito da presença da avó), tentando transmitir a Panqueca lições que aprendeu em sua também curta vida (autodefesa, independência etc.). O irmão maior se coloca na condição de autoridade capaz de punir (bater com vareta nas mãos), assim como na de instância de afeto que concede ao menor os afagos que ele não tem em casa (eventualmente de uma forma inclusive anárquica, como ao colocar fogo na prova). Faruh cuida de Panqueca como entende que deve, estando em uma fase de transição: da mesma forma como demonstra interesse em uma mulher (fase adulta), se empolga com Panqueca quando Nabi ultrapassa um caminhão (infância).

Um elemento interessante da personalidade de Panqueca é a sua geofagia (isto é, ele se alimenta de terra). A condição pode, então, ser associada à necessidade da criança em encontrar segurança. A ausência dos pais lhe gera um vazio que, em princípio, não é suprido por Faruh, de modo que o solo representa a firmeza de um lar que ele gostaria de ter. O amadurecimento de Panqueca ocorre, contudo, quando ele percebe que o que tem de mais importante é a companhia do irmão, dispensando um pai desinteressado. Não à toa, neste momento abandonada não é mais a criança, mas a própria geofagia.

* Filme assistido durante a cobertura da 46ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.