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“CABRA MARCADO PARA MORRER” – Histórias em reconstrução

* Clique aqui para ver o filme na íntegra e gratuito, disponível no YouTube.

Inicialmente, seria um documentário do Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional de Estudantes (UNE) sobre espetáculos de teatro em cidades com problemas sociais em 1962. Dois anos depois, tornou-se uma ficção baseada nos fatos do assassinato do líder camponês João Pedro Teixeira na Paraíba. Interrompido pelo golpe de Estado em 1964, o projeto somente foi retomado em 1981 voltando a ser um documentário, mas como uma investigação sobre os indivíduos envolvidos nas antigas filmagens. A complexa e conturbada trajetória de CABRA MARCADO PARA MORRER é o eixo do filme, radiografia sensível e pulsante de um país e de sua gente.

(© Gaumont do Brasil / Divulgação)

Parafraseando Eduardo Coutinho, que comentou sobre sua produção em 1984, são três histórias integradas: as lutas dos camponeses por melhores condições de vida e de trabalho no Nordeste da década de 1960; o longa ficcional iniciado no engenho da Galiléia em Pernambuco com a participação dos próprios trabalhadores interpretando a si mesmos; e o presente narrativo atualizando o passado a partir da busca pela viúva Elizabeth Teixeira, seus filhos e demais personagens ligados ao período de sofrimento da ditadura militar. A partir de lembranças e imagens, a narrativa tenta reconstruir o que o autoritarismo político bloqueou nas histórias do Brasil, do cinema e de milhares de vidas.

De forma ampla, a obra sistematiza em duas épocas muito próximas o que ocorria historicamente no país. Primeiramente, as mobilizações dos camponeses por seus direitos (na forma de Ligas Camponesas) e em lutas contra os latifundiários locais (razão para a morte de João Pedro e para os conflitos de terra em Sapé na Paraíba); além das iniciativas do CPC da UNE de promover manifestações públicas e artísticas que desencadeassem mudanças revolucionárias. Posteriormente, os impactos do golpe de 1964 são sentidos tanto nas perseguições aos moradores da região quanto no confisco do material de filmagem – as entrevistas feitas em 1981 com os sobreviventes e arquivos de época revelam como a paranoia anticomunista moveu a truculência das forças policiais e militares (como exemplo, as suspeitas de uma revolução socialista no sertão).

Não só o contexto histórico de movimentos sociais transformadores foi bloqueado, como também o trabalho do diretor passou pelo mesmo cenário. São muitas as evidências de como o filme foi devastado pela ditadura: apenas 40% do roteiro filmado, equipamentos e gravações apreendidas, realizadores e elenco fugindo, muitas pessoas envolvidas no longa acusadas de conspiração comunista, outros indivíduos vitimados pela repressão e a representação cinematográfica de João Pedro suspensa. Coube a Coutinho reconstruir seu projeto original dentro do possível, em especial alterando-o para uma narrativa documental que enfoca a reconstrução daquele passado específico. Ainda que o ponto de partida seja reencontrar a família Teixeira, outros personagens também são procurados para contar que rumos suas vidas tomaram.

O cineasta lida com as lacunas da obra inacabada transitando entre presente e passado, através de estratégias que finalizam a história em um misto de imagens ficcionais e documentais. O revezamento imagético é feito principalmente pela sucessão de registros em preto e branco (longa ficcional) e de registro em cores naturais (documentário). Com o decorrer da narrativa, mais recursos se somam para completar o que não foi possível anteriormente: a narração em voice over de Coutinho se sobrepõe às imagens antigas para criar novo efeito dramático, uma dialética entre o que se vê e ouve; e os relatos dos entrevistados preenchem aqueles registros visuais ao repetirem falas e comentarem as cenas filmadas.

São justamente nas entrevistas que se pode notar como trajetórias de vida foram tão abaladas. Ao penetrar nas áreas mais longínquas do território, o documentário reencontra Elizabeth e seus filhos, João Virgínio, José Daniel, Cícero, João Mariano e outros que participaram das antigas gravações, assim como redescobre como estavam dezessete anos depois. Em geral, estavam marcados pelas tragédias ocorridas: podem ter se afastado de familiares e amigos (no caso de Elizabeth, perder o contato com a maioria dos filhos e mudar de nome para se livrar de perseguições), perdido o afeto pelo local onde viviam (especialmente, a Galiléia de onde guardam memórias negativas) e se decepcionado com a luta política a ponto de rejeitá-la dali em diante.

A valorização desses personagens começa desde o momento em que Coutinho exibe para os camponeses as imagens remanescentes do projeto inicial. A câmera registra os olhares e as expressões emocionadas, pois evocam uma nostalgia de um tempo do qual sentem falta e um trabalho prazeroso de se reconhecer ou reconhecer conhecidos. Adiante, quando as entrevistas são feitas, o documentarista começa a mostrar seu talento em extrair relatos e emoções respeitosamente – prepara os entrevistados antecipadamente, permite o silêncio deles, ora aparece ora se oculta enquanto dialoga com tantas pessoas e conduz a conversa até uma revelação pouco esperada. Tudo isso se combina com os closes e planos médios que destacam a indignação de Abrahão, o sofrimento de Marta, o pragmatismo de João Mariano e a espontaneidade cativante de Elizabeth enquanto relembram o passado ou demonstram sua personalidade.

À medida que “Cabra marcado para morrer” se desenrola, as lacunas deixadas pela brusca interrupção da normalidade nacional em 1964 são enfrentadas por Eduardo Coutinho. Dentro de suas possibilidades, ele consegue lidar com o filme incompleto para terminá-lo com outro estilo e abordagem, capazes de conquistar seu lugar na história do cinema. Porém, os demais elementos interrompidos ultrapassam os limites dele e abrangem as desigualdades e retrocessos políticos do país. Afinal, parafraseando Elizabeth, não há democracia sem liberdade, direitos e condições razoáveis para o povo.