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“CABRAS DA PESTE” – Antropofagia social e cinematográfica

De acordo com o Modernismo brasileiro nos anos 1920, as manifestações artísticas no país não deveriam copiar produções estrangeiras, mas “devorar” suas influências para ressignificar o conteúdo novo a ser produzido. Esse princípio parece estar na base de CABRAS DA PESTE, comédia brasileira disponível na Netflix, que compreende com autoralidade como a narrativa pode mesclar inspirações cinematográficas à diversidade social do Brasil. Como consequência, a obra ressignifica o próprio movimento de antropofagia e diverte com as combinações curiosas de estilos e situações.

(© Netflix / Divulgação)

Uma miscelânea criativa de culturas, gêneros cinematográficos e espaços cerca os protagonistas Bruceuilis e Trindade, ambos policiais, O primeiro é cearense e o segundo, paulista. Eles precisam trabalhar juntos para resgatar Celestina, uma cabra considerada patrimônio da cidadezinha de Guaramobim no Ceará, apesar de serem muito diferentes. Durante a investigação, os homens se envolvem em um perigo maior ao cruzar o caminho do traficante Luva Branca e buscar desmascarar sua quadrilha.

Nas sequências de abertura, o diretor Vitor Brandt posiciona o espectador em dois núcleos que, cada um a seu modo, extraem humor de uma história policial em cenários cotidianos. De um lado, está a brasilidade específica de uma cidade pequena do Nordeste com gírias, sotaques e momentos prosaicos particulares (um idoso ouve música na calçada, crianças jogam futebol e um pipoqueiro trabalha); de outro, a turbulência de uma metrópole como São Paulo pelo olhar de uma delegacia que combate o tráfico de drogas e pela caricatura dos próprios policiais (na maioria cômicas figuras duronas) ou de cidadãos de outros locais (a imagem exageradamente caótica de um policial de Guaramobim). Embora haja diferenças de parte a parte, Bruceuilis e Trindade se encontram graças às piadas a respeito do isolamento de cada um deles no ambiente onde estão: o cearense quer combater o crime onde a paz reina e o paulista se desespera ao deixar o escritório e trabalhar nas ruas.

O encontro, de fato, dos dois personagens centrais amplia a postura antropofágica da narrativa ao demonstrar os paralelos existentes entre personalidades e realidades distintas: Bruceuilis quer provar seu valor à comunidade resgatando a desaparecida Celestina onde quer que esteja; Trindade quer convencer a corporação de que pode ser um bom profissional a despeito das desconfianças por não se sacrificar pelos colegas. É uma parceira incomum que se inicia de forma inusitada (o sequestro da cabra) e se desenvolve com referências ao estilo buddy cop (consagrado, por exemplo, por “Máquina mortífera“), entretanto sem se comportar como uma simples cópia. Ao invés de somente reunir o investigador atrapalhado e o seguro de si, o filme combina através dessas figuras dois recortes culturais possíveis do país – algo presente nas suas atitudes banais do cotidiano e nas ações para a solução do caso.

Quando se trata de buddy cop, o timing cômico de diversas cenas também reestrutura o subgênero policial com suas próprias marcas. A trilha sonora apresenta canções inesperadas para gerar um efeito cômico (“Fico assim sem você” de Buchecha para ambientar uma separação dos protagonistas e “Me chama que eu vou” para embalar uma sequência de luta corporal) e confere uma versão nordestina a “The heat is on“, presente em “Um tira da pesada“. Além disso, há situações cotidianas que são encenadas de maneira a ressaltar uma comédia de costumes (a cena dentro de um ônibus sobre ceder assento a idosos) e momentos típicos de tramas policiais que são resolvidos sem clichês batidos (um interrogatório nos moldes de good cop e bad cop). Dialogando com o cinema comercial, o roteiro parodia grandes estrelas dos filmes de ação hollywoodiano, como Bruce Willis, e cria coreografias com humor a partir do trabalho do produtor Halder Gomes.

A interação de Bruceuilis e Trindade pode até ser marcada por arcos já conhecidos, perpassando etapas que remetem às comédias românticas, e evoluções individuais igualmente familiares. Porém, as trajetórias separadas e em conjunto se beneficiam das atuações e da sinergia entre os dois intérpretes, que conferem carisma e humor a figuras decididas a demonstrar sua competência na proteção a outras semanas. Se Matheus Nachtergaele trabalha com eficiência um personagem retirado de sua zona de conforto que sofra ainda mais com incidentes desafiadores, Edmilson Filho rouba cada cena em que está ao compor um sujeito que transita entre humor físico, humor situacional, humor regional e tem uma personalidade espirituosa – certa imprevisibilidade do policial cearense enquanto investiga a identidade do Luva Branca impulsiona os momentos mais cômicos da dupla.

Essas combinações criativas não apenas associam aspectos culturais brasileiros e abordagens cinematográficas como também incorporam elementos contemporâneos. Com efeitos cômicos, a investigação policial é invadida pelo contexto dos aplicativos de transporte e de alimentação; e com efeitos críticos, o envolvimento da política com atividades criminosas rende sequências ilustrativas dos males do foro privilegiado e da insensatez do discurso do vilão inspirado na propaganda política de Jair Bolsonaro. Materializando essas inserções, estão personagens coadjuvantes bastante integrados ao humor da obra: por exemplo, a motorista de Uber vivida por Evelyn Castro, o deputado Zeca Brito interpretado por Falcão e o traficante vivido por Leandro Ramos, são retrabalhados para se diferenciarem das suas aparências.

Torna-se ainda mais expressiva para o mosaico de relações e reconstruções do filme, a decisão de abraçar a fábula na conclusão da narrativa. Mesmo sendo uma história policial envolvendo atos violentos, a resolução da investigação não precisa ser somente pragmática e lógica e pode absorver a imaginação (principalmente, quando Celestina assume um papel de protagonista). Não deixa de ser curioso, portanto, como “Cabras da peste” leva a antropofagia do fazer artístico além dos sentidos tradicionais: o cinema hollywoodiano é “devorado” pela brasilidade de uma cultura que engloba o rural, o urbano, o cosmopolita, o local e o tecnológico. Com essa mistura, os realizadores propõem um frescor convidativo que não invalida o jogo de influências e ressignificações, mas oferece uma experiência cômica e divertida.