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“CALMARIA” – Um caos visual e narrativo

CALMARIA é o tipo de filme que pode enganar à primeira vista, graças à aparência de qualidade que reside em sua ambientação paradisíaca e no forte elenco reunido. Mesmo o primeiro ato e a apresentação do conflito podem passar uma falsa impressão aos olhares descuidados (apesar de já possuírem problemas significativos). No entanto, do segundo ato em diante, qualquer eventual defesa da obra não se sustenta mais e o caos narrativo e visual se intensifica.

Cartaz de “Calmaria

A trama gira em torno do capitão de barco de pesca Baker Dill, que está obcecado por capturar um peixe que foge há muito tempo. Sua pacata vida em Plymouth Island é sacudida quando o passado volta para assombrá-lo na figura da ex-esposa, que reaparece com um sério pedido de ajuda; além disso, um misterioso homem de terno tenta, insistentemente, falar com Baker.

A exposição simples da sinopse mostra como o roteiro possuía muitos aspectos para trabalhar, todos eles desprovidos de uma conexão perceptível que permita costurá-los – essa dificuldade transparece no trabalho de Steven Knight como roteirista, que não consegue dar coesão a cada um dos elementos diegéticos que aparecem em tela.

Steven Knight também falha na construção visual do primeiro ato, por conta de decisões estéticas bonitas, mas sem função dramática, ou simplesmente injustificáveis: são os casos, respectivamente, dos planos gerais ou aéreos que enfocam o mar grandioso ou a beleza da cidade; e da movimentação da câmera que circunda os personagens através de cortes abruptos. Os problemas da direção se acentuam ainda mais por uma montagem que exibe, desnecessária e inesperadamente, planos de objetos e detalhes cênicos e cria um paralelismo forçado entre o protagonista e outro personagem incapaz de qualquer sutileza – os raccords feitos sugerem uma metáfora interessante para as relações familiares, que logo é abandonada em favor de uma resolução muito literal.

Porém, qualquer possibilidade de salvação para o filme se esgota na virada do segundo ato. O plot twist existente parece fabricado por um iniciante que desconhece a necessidade de tornar a surpresa coerente com a narrativa em geral e bem construída em todos os sentidos possíveis. Após esse momento, o que antes era um suspense se transforma em uma ficção científica, responsável por deixar o espectador boquiaberto, tamanha é a infelicidade do resultado final. A passagem do realismo para o fantástico é feita sem qualquer preparação, tornando a produção uma fusão de dois segmentos estanques que pouco dialogam entre si. O próprio desenvolvimento do universo fantasioso deixa uma série de furos, que não fazem das ações dos personagens algo verossímil nem entrelaçam com eficiência os detalhes da diegese.

A transformação incoerente e inacreditável a partir do segundo ato compromete todo o trabalho do elenco. Existem nomes fortes em Hollywood desperdiçados ou esmagados pelo problemático roteiro: Djimon Hounsou e Diane Lane vivem personagens secundários jogados para terceiro plano e de pouca relevância na narrativa; Jason Clarke interpreta um vilão enfraquecido pela irrealidade da proposta quando revelada por completo; e Anne Hathaway tem praticamente uma atuação de uma nota só, movida pela desesperada decisão de encontrar alívio a qualquer custo e sem outras camadas dramáticas. Já Matthew McConaughey se esforça ao máximo para salvar um personagem que não oferece tantas oportunidades de complexificação, afinal ele remete aos clássicos papéis estereotipados do ator (o galã bon vivant de “Sahara” e “Um amor de tesouro” com uma abordagem não cômica) e se apequena demais após o plot twist – mesmo com toda a seriedade que tenta depositar no protagonista, o ator está perdido e desorientado com o material esquizofrênico à sua disposição

Desviando-se dos níveis superficiais da trama, é possível perceber como a premissa inicial era forte e envolvente. Temas como maus tratos, abuso, isolamento sentimental e amor familiar podem não ser originais, mas são, universalmente, capazes de impactar diferentes espectadores desde que bem construídos. Não é esse o caso do filme, que enfraquece suas eventuais potencialidades pela forma cinematográfica equivocada com que mistura gêneros e confunde os aspectos constituintes do universo fílmico – dessa forma, as questões emocionais da jornada dos personagens ficam relegadas a uma posição marginalizada e apenas surgem rapidamente em um desfecho infeliz para a costura dos conflitos.

Diante das várias deficiências na organização da narrativa e da estética, os pequenos detalhes positivos encontrados em camadas muito profundas de “Calmaria” acabam escondidos e ofuscados. De nada adianta ter um elenco renomado e temas fortes se as ambições artísticas do roteiro e da direção de Steven Knight ultrapassam sua capacidade de contar boas histórias. Trazer enredo e estilo complexos não pode ser um capricho não pensado para tentar transformar um filme naquilo que não é.