Nosso Cinema

A melhor fonte de críticas de cinema

“CAMINHOS DA MEMÓRIA” – Uma releitura que não ultrapassa seu potencial

“Não há nada mais viciante que o passado”: com essa frase pretensamente profunda (e também pela sua premissa), CAMINHOS DA MEMÓRIA parece propor uma reflexão sobre o apego às memórias e a dificuldade de seguir a vida após um evento traumático. Porém, quanto mais se desenvolve, mais o filme mostra que a utilização das suas boas ideias sobre a revisitação do pretérito servem somente para criar um universo e como ferramenta narrativa dentro de uma releitura de uma história clássica da mitologia grega.

No futuro, Miami sofreu graves consequências decorrentes da mudança climática global e se tornou parcialmente submersa. Nick Bannister é especialista em uma tecnologia de recuperação vívida de memórias eventualmente esquecidas, permitindo acesso ao que foi esquecido ou ao que não foi percebido em detalhes. Enquanto presta serviços à polícia para investigar crimes através do seu trabalho, Nick encontra em uma enigmática cliente, Mae, uma obsessão que não lhe permite seguir em frente.

(© WARNER BROS. / Divulgação)

A ideia da criação de um futuro afetado por mudanças climáticas globais, apesar de interessante e consideravelmente realista, serve apenas como pano de fundo no roteiro de Lisa Joy em seu primeiro trabalho em longa-metragem como roteirista e diretora. Talvez o que o filme tenha de melhor seja justamente a criação de um universo diegético coeso e sólido, contudo seu aproveitamento deixa a desejar. Os problemas da atualidade – corrupção, Estado falido, criminalidade, drogadição etc. -, como não poderia deixar de ser, mostram-se presentes nesse futuro. Dois aspectos, todavia, se revelam pilares desse contexto. O primeiro se revela ao abismo social majorado pela crise climática: pessoas pobres vivem em ruas constantemente alagadas, locomovendo-se por barcos (o que dá um charme visual); pessoas ricas vivem nas “Terras Secas” e separados por barragens. A metáfora não poderia ser mais clara.

Em constante voice over – indicando alguma preguiça do roteiro para dar organicidade ao cenário didaticamente explicado -, Nick explica que a nostalgia se tornou um meio de vida para alguns. O segundo pilar, então, está justamente na ideia do tempo não mais como uma via de mão única, mas um campo que pode ser transitado para trás, isto é, com uma revisitação vívida do passado. Dessa forma, o passado não está preso à memória pessoal e inacessível, sendo possível uma sensação de revivê-lo e guardá-lo pela via audiovisual tridimensional – aliás, sem declarar o ano, parece que o futuro de “Reminiscence” (nome original do filme) é próximo, pois o máximo de tecnologia (além dessa relativa às memórias) é o uso de hologramas. Desse segundo pilar poderiam decorrer reflexões instigantes como o potencial viciante das recordações e a dificuldade de algumas pessoas em abandonar traumas pretéritos, porém o trabalho de Nick é mais uma ferramenta narrativa do que uma proposta de pensamento.

É no trabalho que Nick, interpretado por um bom Hugh Jackman, convive com Watts, sua fiel escudeira. A funcionária, vivida por uma ótima Thandiwe Newton, é mais que uma subordinada ou mesmo um braço direito, mas uma contraposição ao apego nostálgico do protagonista. A interação entre eles é a melhor do filme, pois eles são opostos, a despeito da sua amizade. Para Watts, o retorno ao passado pode servir para os clientes, mas ela prefere prosseguir a vida no presente em direção ao futuro. Sua personalidade é apresentada como forte e pouco passional (justificando sua presença na melhor cena de ação do longa), porém um belo diálogo com Mae desconstrói um pouco o seu perfil badass e a humaniza por mostrar suas vulnerabilidades. No caso de Nick, a maior vulnerabilidade é Mae, papel de Rebecca Ferguson que exigiu mais de seu visual do que de seu talento como atriz.

Mae é personagem central porque finca Nick ao passado, fazendo com que ele promova investigações para saber quem ela realmente é (e se ela é quem ele conheceu). Os diálogos são pobres (como quando ele pergunta por que ela chorou na memória) e o romance entre eles é pouco convincente em razão da efemeridade em tela. Sensual em vestidos com fendas e decote, Mae é colocada inicialmente em patamar angelical, como ao surgir na contraluz e ao encantar Nick quando canta (algo bastante similar a “O rei do show”, quase uma repetição da ideia), tornando-se objeto de desejo logo nos primeiros minutos ao mostrar um brinquedo guardado escondido. Há uma picância no relacionamento entre os dois (não apenas pelo brinquedo, mas pelo olhar que ele desfere a ela, por exemplo), tornando-se velozmente um amor platônico cujas memórias doces (dentre outras, a conversa em uma espécie de bosque no pôr do sol, com som de vento suave e canto de pássaros com uma música tranquila) justificam a obsessão do frágil Nick, mas motivam ainda mais a estrutura investigativa da trama. A investigação, todavia, não é das mais interessantes, pois cansativa por um desnecessário alongamento.

As críticas a problemas atuais como os mencionados (corrupção e drogadição em especial) aparecem de maneira lateral na narrativa, mais focada na fixação de Nick por Mae. O maior problema é que, em meio a uma cidade de design razoavelmente criativo (o plano-sequência dos minutos iniciais é belíssimo), Lisa Joy não consegue cativar a curiosidade em relação a Mae, recaindo em obviedades que ofuscam as boas ideias periféricas. Com olhar benevolente, no máximo, pode-se dizer que “Caminhos da memória” é uma releitura criativa do mito de Orfeu, uma releitura que poderia ser ótima, mas que fica no potencial.