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“CANTO DOS OSSOS” – O que é ser um monstro? [9º ODC]

Fomos acostumados por convenções sociais e narrativas artísticas a supor que monstros são seres disformes e aterrorizantes que trazem consigo comportamentos violentos. Tal definição também oculta a percepção de que atribuir um caráter monstruoso a algo pode ser uma operação de desqualificação do que não se enquadra na ordem regular do status quo. Na linha tênue entre essas visões está o terror nacional CANTO DOS OSSOS, que questiona as figuras chamadas de monstros pela sociedade.

(© Bárbara Cabeça / Divulgação)

Tais discussões acontecem tendo como pano de fundo uma cidade litorânea fora dos grandes centros. Enquanto os moradores tocam suas vidas comuns na escola, no bar, no comércio local e em outros espaços, duas vampiras se separam e seguem seus próprios rumos. Décadas depois, estão no mesmo local, uma como professora do Ensino Médio e outra como caçadora de presas à noite.

Como a narrativa contesta versões estabelecidas do que é monstruoso, as criaturas não se limitam a ser apenas alguma entidade já conhecida das histórias de terror. Poderiam ser algo semelhante a zumbis (graças ao olhar sem vida), a lobisomens (devido às longas unhas pontiagudas) e a vampiros (graças ao contágio a partir de mordidas). Nos momentos de ação com os ataques dos “monstros”, o filme assume traços clássicos do gênero, como o uso da escuridão, o emprego de uma trilha sonora sugestiva para uma atmosfera de medo e a explicitação dos ferimentos e do sangue. Além disso, define sua marca reflexiva através de uma narração em voice over que levanta questões profundas, como a imortalidade, o destino de vidas distintas e a repressão social a alguns seres.

Manter-se dentro do processo de referências ao terror acrescentando-se uma perspectiva filosófica inesperada fornece os melhores efeitos do gênero. Quando a produção tenta expandir seu universo diegético e criar outros recursos de roteiro para o mistério, a abordagem narrativa perde em unidade estilística. Por motivos variados, a ambientação transcendental e fragmentada do suspense se enfraquece: trabalhar um dos personagens como vilão simplifica uma experiência mais expressiva que não dependeria desse elemento; e construir uma subtrama misteriosa envolvendo as ações de um hotel na cidade coloca aspectos demais em uma história já coesa sem esse artifício forçado.

Oscilar no tratamento ao terror não significa que o estilo não carregue camadas densas às sensações experimentadas. Nas cenas de ataque e de contaminação das vítimas, transborda uma sensualidade poderosa que remete ao erotismo impregnado nas características dos vampiros – é o que acontece, por exemplo, nos momentos em que uma mulher parece reagir com prazer às duas mordidas que leva e em que dois homens fazem sexo após um deles ter sido violentamente atacado pelo outro. Nesse sentido, é revelador que a maioria dos personagens seja da comunidade LGBTQIA+ e se relacionem sexualmente sem que isto seja uma questão especial para eles ou algo a se esconder por proteção ou falta de autorreconhecimento – assim, os diretores Jorge Polo e Petrus de Bairros escancaram como a sociedade oprime os corpos, afetos, identidades e relações daqueles que não pertencem à heterossexualidade, taxando-os como monstros.

A criatividade dos cineastas também se observa na condução original das imagens. Se a proposta é se apropriar do terror para fazer comentários sociais e propor experiências sensoriais peculiares, a construção formal da obra precisa acompanhar a multiplicidade de ideias. Logo, em muitas sequências a fotografia ganha uma granulação aparentemente amadora, os enquadramentos são feitos espontaneamente sem a obrigação de serem supostamente “corretos”, o design sonoro incorpora ruídos irrealistas fora de algum naturalismo cênico e a decupagem das cenas brinca propositalmente com as regras de continuidade. Em conjunto, essas técnicas constroem um jogo contrastante de sensações, que harmoniza com as propostas temáticas de um enredo incomum.

Em certa medida, são contraditórias as passagens em que o filme investe no naturalismo das atuações e da construção visual. As dinâmicas entre personagens conversando na escola ou na entrada de um bar são marcadas por diálogos intencionalmente mais livres e por uma decupagem de cores e enquadramentos convencionais, incapazes na prática de fortalecer a sensação de naturalidade pretendida. Os efeitos se frustram porque as decisões soam artificiais (como moldadas tão controladamente que insinuam uma espontaneidade não sentida artisticamente) e pouco conectadas à estilização experimentadas em outras sequências – em termos totais, são breves momentos desvinculados da unidade estética proposta.

Exceto por desvios ocasionais de sua ideia fundante, “Canto dos ossos” se fundamenta a partir dos encontros e das ligações dos personagens. São confluências experimentais, marginalizadas e expressivas que impõem diferentes leituras: pode parecer um conto assustador e violento de dilaceração e morte para aqueles que não concebem a existência de diversas formas de relacionamento afetivo; pode ser um convite para a aceitação de corpos e identidades através da naturalidade pela qual indivíduos desconhecidos se encontram e se conectam. No fim das contas, o verdadeiro terror pode estar na percepção de que distintas afetividades podem ser considerados monstros.  

* Filme assistido durante a cobertura da 9ª edição do Olhar de Cinema de Curitiba (9th Curitiba Int’l Film Festival).