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“CARMEN DE GODARD” – Os sentidos do extraordinário

Um dos maiores nomes da nouvelle vague, Godard não ficou conhecido pela acessibilidade de seus filmes. CARMEN DE GODARD (no original, “Prénom Carmen”) é um exemplar adequado da sua filmografia: muitas vezes ininteligível, tecnicamente caótico e de resultado extraordinário. Gostando-se ou não de suas obras, é inegável que o que ele fez ninguém fez igual.

Como parte de uma empreitada criminosa junto a amigos, Carmen pede a seu tio, Jean – um diretor de cinema marginalizado -, a chave de sua casa na praia, sob pretexto de gravar um filme com eles. Durante o assalto a um banco, ela se apaixona pelo segurança do local, dando início a um tumultuado relacionamento em que ele participa dos crimes do grupo de Carmen. Enquanto o casal tenta fugir, Jean planeja um filme de retorno e um quarteto de cordas ensaia peças de Beethoven.

A sinopse pode parecer confusa, mas é essa mesma a intenção de Jean-Luc Godard com seu filme. Provavelmente ele não gostaria de um esforço para resumir a narrativa, dado seu empenho em se afastar das noções tradicionais de storytelling, porém, para fins de análise, é possível pescar os três arcos que compõem seu quebra-cabeça. O primeiro e mais importante é o de Carmen, vivida de corpo e alma (com bastante exposição do corpo, inclusive) por Maruschka Detmers. A inspiração para o plot está na ópera de Bizet, que, por sua vez, em 1875, imortalizou uma ópera baseada no romance homônimo de Prosper Mérimée, de 1845.

(© Sara Films / Divulgação)

Quando se fala em Carmen, Bizet é a referência imediata. Na versão godardiana, muitos dos traços da ópera são mantidos, sobretudo a personalidade indômita, imageticamente associada à cor vermelha pelas suas vestimentas (inclusive no longa). A essência de uma mulher impetuosa, temperamental e que rejeita a submissão à vontade alheia (principalmente a masculina) se faz presente, Carmen é uma transgressora tal qual o próprio Godard. No original, ela se apaixona por Don José, um cabo do exército que passa a agir criminosamente por se entregar ao amor nutrido por ela. Na versão do cineasta ocorre o mesmo: Jacques Bonnaffé (que compartilha com Detmers o protagonismo de cenas de uma sexualidade despudorada e pujante) interpreta Joseph, um guarda que larga o ofício para seguir Carmen na criminalidade. Trata-se, todavia, de um romance animalesco desde o início (no banco, ela o beija enquanto a ação ocorre; do local, saem amarrados etc.), regado com pitadas cômicas (o jeito desengonçado de Joseph enquanto guarda, a limpeza durante o assalto etc.) e duelos verbais e sexuais (a cena do chuveiro é graficamente marcante).

Os diálogos do roteiro de Anne-Marie Miéville fogem da obviedade e, na verdade, não têm sentido apriorístico. A concatenação dos fatos é por vezes ilógica, tornando a obra prolixa e parcialmente ininteligível. O segundo arco narrativo é protagonizado pelo próprio Godard no papel do cineasta, uma proposta evidente de imitação da vida pela arte, na qual ele se coloca como um incompreendido e um marginalizado de maneira exagerada (basta ver sua vontade em permanecer no hospital). Jean é um misantropo (quando Carmen pergunta se ele não vai questionar a razão da sua visita, a resposta é que não porque isso poderia gerar um diálogo) grosseiro (como ao abordar a enfermeira) cuja desilusão do mundo é reflexo da visão do cineasta quanto ao cinema. “Carmen de Godard” é um filme assumidamente metalinguístico, mas no campo cinematográfico a visão de seu autor é tremendamente pessimista. Há um pessimismo em relação à sociedade, como expressado na frase “quando merda tiver valor, pobre nascerá sem rabo”, mas sobretudo no contexto em que Jean se insere e em suas atitudes. Não é à toa que, na máquina de escrever, suas primeiras palavras são “mal visto”.

Na técnica, o filme se torna caótico em razão do trabalho sonoro e de montagem. No primeiro caso, há uma sobreposição dos sons, como quando Jean segura um rádio e o que se ouve é música, ruído de avião, ruído de louças e assim por diante. A trilha sonora é propositalmente descompassada, mesclando-se então com os cortes difíceis de serem compreendidos inicialmente pela montagem paralela. Isso porque a obra parece ter aversão à simetria, misturando os sons entre as cenas e cortando cenas por planos (como os do mar) sem um critério aparente. A sequência dos acontecimentos não é clara e é intencionalmente poluída pela montagem e pelo som. Contudo, a música exerce importante função, ora pelo quarteto de cordas – protagonista do terceiro arco narrativo, cuja função não é narrativa, mas de mesclar os sons das cenas -, ora pela melancolia da belíssima “Ruby’s arms”, de Tom Waits, quando o desânimo de Joseph se torna palpável.

O resultado se torna extraordinário no sentido estrito da palavra, ou seja, fora do comum. Desgostar do filme parece mais fácil do que apreciá-lo, dado que essa apreciação exige um certo trabalho por parte do espectador, que naturalmente demora para absorver um ritmo inconstante do longa, dentre outras características. O desafio é justamente se dispor a esse trabalho, oportunidade a partir da qual é possível perceber que o termo “extraordinário” pode ser empregado ao filme também como sinônimo de admirável.