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“CHAMAS DA VINGANÇA” (2022) – Chapeuzinho Vermelho e Lobo Mau

Pense em uma história envolvendo uma idosa em condição frágil de saúde, uma menina usando um capuz vermelho, uma floresta e um ser malvado que está atrás da menina. Embora pareça a famosa fábula da Chapeuzinho Vermelho, trata-se de CHAMAS DA VINGANÇA (2022).

Há alguns anos, Andy e Vicky se submeteram a um experimento científico envolvendo uma droga, o “Lote 6”, cuja injeção acabou lhes dando poderes sobrenaturais. Hoje, eles tentam viver uma vida comum e anônima com sua filha, Charlie. O problema é que a garota tem uma habilidade pirocinética que não consegue controlar direito, o que acarreta risco a todos à sua volta e aumenta a chance de a família sair do anonimato. Se isso acontecer, os responsáveis pelo Lote 6 vão querer Charlie como objeto de estudo, o que seus pais querem evitar.

(© Universal Pictures / Divulgação)

Dois anos após encantar o público com “E. T.: o extraterrestre”, Drew Barrymore participou da versão de 1984 de “Chamas da vingança”. A produção, dirigida por Mark L. Lester e roteirizada por Stanley Mann, está longe de ser um grande filme, mas consegue ser lembrada pela presença marcante de Barrymore (à época, com nove anos de idade) – o longa transcendeu suas próprias limitações graças aos fios esvoaçantes de uma adorável criança, uma imagem por algum motivo memorável. A versão de 2022, dirigida por Keith Thomas, tem em Charlie uma criança um pouco mais velha, Ryan Kiera Armstrong (de doze anos) e bem menos cativante.

Mesmo que os dois filmes (o de 1984 e o de 2022) tenham por base o mesmo livro de Stephen King, e mesmo que ele seja um autor conhecido no terror, o plot de “Firestarter” (nome original) não tem vocação para o terror. Na primeira adaptação, o que poderia aterrorizar era o mistério em torno das pessoas que queriam capturar Andy e Charlie, que estavam em fuga desde o prólogo in media res da obra. Ainda assim, o viés era claramente de uma ficção científica assumida enquanto tal, sem flerte com outros gêneros. Não se pode afirmar que a adaptação de Thomas tenha perdido sua veia sci-fi (na verdade, aprimorou alguns aspectos nesse quesito, como as lentes de contato), mas há cenas de outros gêneros que simplesmente não funcionam.

O cineasta tenta trabalhar seu filme no terror, mas nem toda atmosfera de mistério é propensa a assustar (afinal, o mistério não é elemento exclusivo do terror). Assim, a cena da professora no banheiro cria um suspense artificial (a personagem pode não saber o que pode lhe ocorrer, mas o espectador já sabe e é isso que importa nesse caso), ao passo que o jump scare na cena protagonizada por Vicky (Sydney Lemmon, pouco relevante) é extremamente previsível e em nada agrega à película (aqui novamente o espectador não se surpreende, porém o visual de iluminação indireta tem coerência). Ainda mais grave, o roteiro de Scott Teems apresenta pitadas de humor que destoam completamente da proposta. Nesse quesito, destacam-se as cenas em que Andy (Zac Efron, em desempenho medíocre) demonstra preocupação (quase obsessiva, dada a repetição) com a vindoura puberdade da filha, a menção textual a Tony Robbins e uma fala em que Andy ironiza a confiança cega de uma personagem em relação ao que vê na televisão (se for uma tentativa de estimular senso crítico, é falha).

O script de Teems, na verdade, é deveras frágil. As personagens são mal trabalhadas, sobretudo Joseph (Kurtwood Smith), que se apresenta com um arco pessoal, mas acaba sendo inútil, e a capitã Hollister (Gloria Reuben), que não sai do estereótipo do papel. O vilão interpretado por Michael Greyeyes não é de todo ruim, mas não convence em seu desfecho. Os diálogos, além de pobres, nem sempre fazem sentido (por que a menina é irmã e mãe?). Ainda que se considere a suspensão da descrença, a sucessão de inverossimilhanças puxam “Chamas da vingança”, um filme B, para uma categoria abaixo. Por exemplo: se o mero uso de internet gera um risco de rastreio, por que Andy não demonstra a mesma preocupação no uso profissional de seus poderes? Como pode a professora de Charlie demonstrar tamanha indiferença ao bullying sofrido pela garota?

Chama ainda mais a atenção a inabilidade do diretor em lidar com o ritmo de seu filme. O primeiro ato é um drama familiar lento e desinteressante, ao que se segue um esvaziamento das já superficiais reflexões sobre a proteção parental. Com o andamento da narrativa, é esperado que Charlie demonstre mais habilidades paranormais, contudo o incremento de seus poderes, em progressão geométrica, reforça o quão mal o cineasta desenvolve seu longa (basta um acerto na floresta para que a protagonista tenha domínio de capacidades que até então nem sabia possuir). De nada adianta a ótima trilha musical (assinada por Daniel A. Davies, Cody Carpenter e John Carpenter) se a mise en scène é ruim – isso tudo sem considerar os efeitos visuais fajutos e a insistência na pouca profundidade de campo (escondendo os cenários), reflexo do baixo orçamento da película. Todos os recursos devem ter sido destinados a Efron e Carpenter.

Na sequência final, Charlie veste um capuz avermelhado, tal qual Chapeuzinho Vermelho. Rainbird, o vilão óbvio, se furta a assumir a condição de Lobo Mau. Este papel coube ao próprio diretor.