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“CHERRY – INOCÊNCIA PERDIDA” – Instituições maléficas

Existem duas instituições que são criticadas em CHERRY – INOCÊNCIA PERDIDA. A primeira, de uma forma mais feroz e explícita e com função narrativa mais clara, é o Exército. A segunda, mais velada e despropositada, é o sistema financeiro. No meio de tudo isso está um ótimo trabalho de atuação e opções estilísticas completamente desnecessárias.

De aluno colegial a ex-médico do exército que atuou no Iraque, o protagonista sofre de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) em seu retorno para casa. O que começa como um relacionamento afetivo intenso se torna mola propulsora para uma vida que ele não imaginava, que se torna cada vez mais danosa, criminosa e perigosa.

A obra é longa, são mais de duas horas que poderiam ser encurtadas se retiradas algumas cenas dispensáveis (como a que envolve Tommy, o amigo do chefe). Dividido em cinco partes (três atos) somadas a um prólogo e um epílogo, o roteiro escrito por Angela Russo-Otstot e Jessica Goldberg, baseado no livro de Nico Walker, faz com que o protagonista – daqui em diante, Nico (seu nome não fica claro) – costure, ele mesmo, a sequência de eventos, com quase ininterrupto uso de narração voice over e flashbacks que ele mesmo decide mostrar ao espectador. A narrativa é lírica por adotar o ponto de vista interior do protagonista (exibindo, assim, a sua subjetividade) e por não haver distância entre o narrador e a estória, mas é épica por relatar o passado e por ter como ponto de foco os incidentes vividos por ele.

(© Apple Productions / Divulgação)

A direção de Anthony Russo e Joe Russo abraça opções estilísticas fortes e marcantes, como a quebra da quarta parede para intensificar o lado épico da narrativa. O primeiro ato é romântico, aproveitando da trilha musical de Henry Jackman sua LeitmotivThe comedown” e as similares (“When life was beginning, I saw you” e “A thing for weak guys”. A trilha é variada, do soul de Van Morrison (“Brand new day” e “Into the mystic”) à ópera de Montserrat Caballé (“Tosca”, de Puccini), com maior quantidade das músicas instrumentais de Jackman acompanhando o ritmo da trama – por exemplo, nas cenas de ação, com “Iraq”. A vasta trilha é reflexo da longa jornada de Nico, que tem um segundo ato de ação (enquanto está no exército) e um terceiro ato dramático (quando volta para casa e sofre de TEPT).

Ocorre que os irmãos Russo mais erram do que acertam nas opções estilísticas. Cenas em slow motion, uso de lentes grande-angulares e pouca profundidade de campo são recursos ótimos e válidos, porém se tornam um incômodo quando despropositados. Na cena em que Nico está sob efeito de oxicodona, em que toca “OxyContin” (da trilha original), a distorção da imagem faz sentido, até porque o filme inteiro adota o ponto de vista dele. Entretanto, tantos recursos técnicos minam cenas de bom potencial, é o que ocorre na sequência de ação com James (Forrest Goodluck) e Pills (Jack Reynor), em que a câmera na mão e o contreplongée, ao menos somados, são um exagero evidente. O que acaba salvando é a atuação excelente de Tom Holland, que consegue romper com os papéis adolescentes à moda de super-herói para interpretar uma personagem adulta com enorme carga dramática. No primeiro ato, isso não fica evidente (talvez pelo visual caricato, com franja e óculos, um estilo nerd, que não corresponde à personagem vista na tela), porém o crescimento no segundo e principalmente no terceiro ato é impressionante. Sob influência dos desdobramentos do TEPT, Holland tem atuação magnífica.

Também são destaques positivos a montagem de Jeff Groth e a fotografia de Newton Thomas Sigel. No primeiro caso, as montagens elípticas (no segundo capítulo e no epílogo) são um respiro para a narrativa alongada e algumas transições são tecnicamente impecáveis (da terceira para a quarta parte em especial). No que se refere à fotografia, ainda que o emprego de razão de aspecto reduzida na segunda parte em nada agregue à película, a maleabilidade imagética merece reconhecimento, como no visual desértico do segundo ato e as cores rubras presentes no terceiro. A cena do efeito do ecstasy, igualmente, a dessaturação inicial da imagem, que vai se perdendo com a aproximação de Emily, é muito boa.

Além dos excessos da mise en scène, outro defeito de “Cherry” é que a crítica ao sistema financeiro é completamente rasa. Se é interessante a razão de esconder o rosto dos funcionários em um momento (como se fossem ferramentas dos bancos, não pessoas) para mostrá-los em outro (humanizando-os enquanto vítimas), os nomes jocosos das instituições propõem uma reflexão sem aprofundamento algum. Quanto ao exército (segunda instituição criticada no filme), o retrato dos sargentos como estúpidos (Sargento North) e insensíveis (Sargento Greene) é generalista em demasia, porém a violência (física e verbal) à qual Nico é submetido é o que consegue catapultar a trama para o viés dramático do terceiro ato.

Seria mais interessante um trabalho menos linear, excluindo as partes 2 e 3 para colocar cenas em flashback nas partes 4 e 5, o que poderia prejudicar o título do longa, mas seria mais coerente com a proposta de uma trajetória bem específica. Nos dois últimos capítulos, não há novidade em relação ao que já foi visto no cinema, mas perceber isso empalidece “Cherry”, que pode ser melhor aproveitado se encarado como um discurso antiguerra.