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“CHORÃO: MARGINAL ALADO” e “BANQUETE COUTINHO” [21 F.Rio]

(© O2 Play / Divulgação)

CHORÃO: MARGINAL ALADO é mais uma demonstração da ótima tradição brasileira de fazer documentários. A produção traz depoimentos, imagens do acervo pessoal e da mídia que englobam a vida particular e a trajetória profissional de Chorão, vocalista do Charlie Brown Jr., para construir um retrato sensível e nada moralista. Trata-se de uma figura de personalidade muito forte que se envolveu em polêmicas e controvérsias responsáveis por lhe render várias críticas e conflitos, algo que o filme jamais esconde ou minimiza. Pelo contrário, trata de tais assuntos usando diferentes entrevistados que possam oferecer uma abordagem humana ao personagem.

Colher relatos de figuras famosas do meio musical, como o produtor Rick Bonadio e o companheiro de grupo Champignon, e do convívio íntimo, como a viúva Graziela Gonçalves, faz com que o centro narrativo seja muito mais as múltiplas facetas do roqueiro do que o histórico da banda. Desse modo, é com grande eficiência que o espectador é convidado para mergulhar na intimidade e na carreira do vocalista para conhecer sua paixão por skate; talento na elaboração de canções; estilo particular de canto e de apresentação; temperamento exigente com colegas e funcionários; autoconfiança inflexível e, por vezes, radical; predisposição a ajudar a todos ao redor; a capacidade de se desgastar física e psicologicamente com os shows e a entrega para os amigos; e decaída até a morte por overdose.

Um biografado tão multifacetado e inquieto quanto Chorão pede que o estilo do documentário acompanhe suas características. Nesse sentido, Felipe Novaes acerta em articular tamanha inquietude individual com as variações da montagem e do formato das imagens apresentadas. Existem registros das mais distintas formas se alternando rapidamente, como aqueles feitos intimamente pela equipe nos bastidores dos shows, outros mais impessoais feitos pela imprensa e mais alguns feitos improvisadamente com menos apuro técnico enquanto andava de skate. Da mesma maneira, o ritmo da narrativa se transforma continuamente para dar coesão, em pouco tempo, a cenas que o mostram cantando com grande energia e andando de skate como sendo algo privado e pessoal.

A montagem também se revela uma ferramenta importante para evocar as diferentes sensações associadas à vida do roqueiro. É possível rir diante da briga com o líder de Los Hermanos e se emocionar com os sucessivos relatos sobre sua decadência emocional encadeados em sequência. Além disso, o encaixe das canções tem uma precisão capaz de fazê-las não apenas serem citadas como trabalhos do Charlie Brown Jr., mas servirem como trilha sonora que comenta e ambienta as passagens do filme. É por isso, então, que a música que encerra a projeção consegue gerar um último clímax emocional e ainda dizer muito sobre quem era Chorão.

(© Heco Produções / Divulgação)

Eduardo Coutinho foi um documentarista brilhante no Brasil, que proporcionou ao cinema trabalhos muito distintos entre si, como “Edifício Master” e “Cabra marcado para morrer“. Em razão disso, BANQUETE COUTINHO se torna um projeto riquíssimo por se propor a analisar a filmografia do falecido cineasta, destacando o variado e refinado cardápio de filmes existentes. O documentário, para tanto, combina conversas filmadas com Coutinho e trechos encadeados de suas produções.

Por mais que a proposta seja interessantíssima e fascinante, Josafá Veloso apresenta uma fragilidade esporádica quando a narrativa tenta provar uma tese: Eduardo Coutinho teria feito sempre o mesmo filme? Nem se trata de uma indagação verdadeira, pois o diretor demonstra já ter uma resposta prévia à questão e apenas buscar sustentar sua posição sobre o tema. Desse modo, a narração em voice over, em alguns momentos, insiste na exposição de como a carreira do antigo documentarista investiria sempre em temáticas e abordagens semelhantes. Dentro desse aspecto, entretanto, é um ponto positivo não prolongar por toda sua projeção o esforço de comprovação da tese.

Em geral, a narrativa está mais preocupada em abordar a visão de mundo cultíssima de Coutinho através das conversas filmadas (que, inclusive, revelam um pouco de sua personalidade ranzinza, ao mostrá-lo questionando o porquê e a duração daquela entrevista). Josafá Veloso consegue transitar por diferentes temas, dentre eles as leituras de Walter Banjamin, Pierre Bordieu e Lévi-Strauss; as reflexões sobre a dualidade entre realidade e ficção no documentário; a relação entre entrevistador e entrevistado; a importância de “Cabra marcado para morrer” para seu realizador; e assuntos pessoais, como o fumo, ou filosóficos, como a mortalidade.

A abordagem das questões filosóficas, cinematográficas ou epistemológicas também é feita pelo encadeamento dos trechos dos filmes de Coutinho, tanto os muitos documentários quanto as poucas ficções da sua carreira. Graças à montagem, essas cenas conversam entre si de modo orgânico e acentuam a coerência do artista em traduzir visualmente suas percepções de mundo e sensibilidade toda própria. Características essas que igualmente se percebem no estilo expressivo de seus projetos, preparando previamente com muita atenção os entrevistados e cultivando silêncios durante as entrevistas que contribuíram, técnicas capazes de proporcionar momentos de inspirada naturalidade e poderosas leituras da realidade. A capacidade de imersão no universo de Eduardo Coutinho é tamanha que é com grande lamentação que se deixa a sessão após as pouco mais de uma hora de projeção.

*Filmes assistidos durante a cobertura da 21ª edição do Festival do Rio (21th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).