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“COISAS VERDADEIRAS” – Aventuras não valem tanto [45 MICSP]

Em COISAS VERDADEIRAS, a protagonista tem ao seu redor pessoas que gostam dela de maneira autêntica, independentemente do que ela possa lhes oferecer. Entretanto, ela enxerga sua vida tão amarga que a oportunidade de desconsiderar pessoas e responsabilidades, trazida por um desconhecido, é sedutora demais para deixar passar – ainda que isso gere o risco de perder tudo o que tem.

Pouco satisfeita com o próprio emprego, Kate segue seus dias em uma vida tranquila e sem maiores emoções. Quando ela começa a se relacionar com um homem que atende no trabalho, sua rotina ganha a agitação que ela queria, mas com desdobramentos indesejados.

Kate deixa uma margem de dúvida acerca do seu real objetivo em se relacionar com o “Loiro” (cujo nome real ela sequer descobre). Seria uma vontade indomável de desrespeitar a sociedade na mesma medida em que se sente ignorada? Uma autossabotagem? Baseado no livro de Deborah Kay Davies, o roteiro escrito pela diretora Harry Wootliff juntamente com Molly Davies torna a protagonista ambígua: no trabalho, ela não encontra motivação sequer para explicar o próprio desleixo; na vida social, é restrita ao que a amiga Alison (Hayley Squires) organiza, o que ocorre também com a vida afetiva. Pouco importa se Rob (Tom Weston-Jones) é bonito e interessante como promete Alison, pois se o que ele quer é um relacionamento sério e sem aventuras, não terá os atrativos que Kate busca.

Esses atrativos consistem em oportunidades de dar as costas para tudo e para todos, como se quaisquer responsabilidades pudessem esperar (ou como se não houvesse consequências por descumpri-las). Loiro (Tom Burke, ótimo) é a válvula de escape para o tédio da rotina de Kate. Apenas motivada a encontrá-lo é que ela é capaz de criar desculpas para se ausentar do trabalho (o que é alimentado pelas críticas que ele faz ao emprego dela e talvez até mesmo pelo sigilo quanto às atividades dele). Se ele fuma, ela quer fazer o mesmo. Loiro não dispensa mais uma bebida porque vai dirigir, não se preocupa com o horário porque vai acordar cedo no dia seguinte, nem dispensa sexo dentro do carro. Ele é a companhia perfeita para ir a festas, correr na chuva e ter relações sexuais em lugares públicos.

Loiro representa a espontaneidade que Kate gostaria de ter em sua vida, criando com ela quase um vínculo de dependência (quando ele não a procura, ela acaba fazendo-o em algum momento). Ruth Wilson brilha no papel ao transmitir fragilidade no olhar, reforçando a vulnerabilidade da protagonista que cria uma imagem mental de um parceiro que não corresponde à realidade. É verdade que ele não teve os pais presentes, mas isso não justifica a indissolubilidade do vínculo que ela, unilateralmente, começa a criar. Kate tem ciência de que não sabe quase nada sobre Loiro, mas aceita que ele responda, de maneira inverídica, que tampouco sabe muito sobre ela. Ela se apaixona pela liberdade e pela irresponsabilidade que ele encarna ao seu lado, mas com uma facilidade que reflete a sua própria fraqueza – do contrário, ela não falaria dele tão cedo para os pais.

Apesar de construir uma protagonista muito boa, o roteiro deixa a desejar quando apresenta personagens irrelevantes (é o caso de Nan) ou quando usa mal a subjetividade onírica de Kate (os cortes repentinos também não colaboram para que seus sonhos sejam bem abordados). O desfecho deixa a desejar e o plot twist é pouco verossímil, porém quando eles chegam a atmosfera de uma mulher que anseia pela aventura mais do que tudo já se tornou contagiante o suficiente para conquistar o público.

O que ajuda a ganhar a plateia é a filmagem de Wootliff, que usa razão de aspecto reduzida e planos fechados (muitos closes em Kate, inclusive), além de pouca profundidade de campo, para restringir o espaço entre a protagonista e o público, aproximando-os. Os plongées são desnecessários, mas é acertada a maneira pela qual Kate é colocada perto do espectador. Os cenários nem sempre dialogam com a narrativa – salvo, por exemplo, um eventual plano-detalhe de plantas mortas para representar a morte simbólica de aspectos da vida de Kate -, o que passa despercebido pelos enquadramentos fechados. Esteticamente, destaca-se o uso das cores rosa e roxo como metáfora da mencionada morte simbólica (estão em sua roupa de cama, nas cortinas, em seu vestido etc.).

A vulnerabilidade de Kate é um perigo para ela mesma. Para evitar perder tudo (amigos, emprego, família), é preciso antes de tudo enxergar o buraco que cavou a partir do relacionamento tóxico com Loiro. Para isso é preciso, porém, perceber o quão ilusória é a impressão de que aventuras (como as propostas por ele) valem mais do que aquilo que ela já tinha antes de o conhecer.

* Filme assistido durante a cobertura da 45ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.