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“CORINGA” – Os vilões existem

“Ou você morre herói, ou vive o bastante para ver você mesmo se tornar vilão”. Em uma sociedade feroz, hostil, caótica e egoísta, a ruptura com o status quo pode estar nas mãos de um indivíduo socialmente perigoso. Nesse caso, o heroísmo é uma visão deturpada de alguém que sempre foi vilão. CORINGA tem um protagonista que nega sua própria realidade, característica que talvez o torne ainda mais real.

O filme é a história de origem do “Palhaço do Crime”. Antes de ser o conhecido arqui-inimigo do Batman, Arthur Fleck trabalha como palhaço em uma agência de talentos, dividindo-se entre esse trabalho e os cuidados com seus problemas mentais no serviço social. Cansado da maneira cruel como é tratado por todos, Arthur se rebela e comete assassinatos cujas consequências em Gotham ultrapassam muito a sua imaginação.

Cartaz de “Coringa

Não é possível fazer comparações, pois cada ator teve uma proposta diferente para interpretar o Coringa, alguns (Heath Ledger) com mais êxito que outros (Jared Leto). Joaquin Phoenix tem o filme para si, aproveitando-o ao extremo: sua versão não é de um vilão assustador, um agente do caos disposto a ver “o circo pegar fogo”, mas sim de um homem comum que, depois de absorver incontáveis agressões (físicas e psicológicas) da sociedade, se revolta contra ela e a ataca, tornando-se um símbolo de reação contra o sistema. Phoenix oferece uma das melhores interpretações de sua brilhante carreira, compreendendo que o Coringa é alguém que retribui hostilidade com mais hostilidade, quase indiscriminadamente. A anarquia é consequência, não objetivo.

Compreendendo tais premissas, o ator encara o papel de dentro para fora, mudando as expressões faciais e a linguagem corporal à medida que o Coringa muda a sua postura (já a risada praticamente não muda, é sempre macabra e bem aguda). Por exemplo, enquanto Arthur costuma ficar encurvado, o Coringa se revela muito mais seguro e ereto. Quando Arthur dança sozinho, expondo o corpo esquelético de Phoenix, essa dança é a representação da sua própria melancolia, traduzida em uma dolorosa e aparentemente insanável solidão. Quando o protagonista se descobre ainda mais sozinho do que pensava, dispõe-se a ser percebido, dançando com maior vigor e fugindo da polícia (o que, do seu ponto de vista, é bom, pois enfim ele foi enxergado). Arthur é um homem psicologicamente doente, triste e cabisbaixo que internaliza o próprio sofrimento; Coringa é um ser completamente insano que não se importa com as consequências de seus atos, por mais reprováveis que eles possam ser – afinal, na sua lógica, se ninguém se importa com ele, ele tampouco precisa se importar com os outros.

O risco de a estética ofuscar o Coringa não se concretiza, ao revés, os atributos visuais e sonoros acentuam ainda mais sua loucura. Assim, a maquiagem alcança a desejável ambiguidade da personagem (justificando tanto um palhaço sarcástico quanto um melancólico), aliada à bela fotografia de Lawrence Sher, que aproveita o contexto opressivo de Gotham para destacar o quanto esse contexto moldou o Coringa. A cidade é nublada e tem luzes amareladas, deixando o brilho exclusivo para o protagonista, principalmente quando ele passa a usar o icônico terno, em cores bem escolhidas por Mark Bridges (que precisava se distanciar na medida certa dos predecessores, sem descaracterizar a personagem, mas dando-lhe autonomia visual).

Todd Phillips compreende que tudo gira em torno do Coringa, privilegiando-o no campo, normalmente centralizado e com pouca profundidade de campo. Tudo mais é periférico, inclusive a condição de Gotham, com greves, contenção de gastos públicos e altos índices de criminalidade. Arthur não se revolta contra indivíduos específicos, mas percebe a podridão social e ataca pessoas, vestindo o traje de justiceiro que a mídia colocou nele. Seu ídolo (Robert De Niro, em papel pequeno, mas que frisa Martin Scorsese como referência da película) é horrível, seu interesse afetivo é horrível: a humanidade precisa ser asfixiada. Na sua ótica, digna de uma pessoa muito distante da sanidade, não há maldade em matar motivado pela desilusão social, pois os motins contra a elite de Gotham seriam capazes de dar visibilidade a párias sociais como Arthur.

Reverenciando diversos clássicos, de “Tempos modernos” a “O rei da comédia” (cuja crítica pode ser lida clicando aqui), Phillips faz uma versão repulsiva de “Taxi driver” (como dito, Scorsese é a grande referência). A trilha musical do longa vai de Jimmy Durante (“Smile”, na versão do clássico de Chaplin) a Frank Sinatra (“Send in the clowns”), sempre mediante combinação rítmica (no caso das músicas instrumentais) e semântica (no caso das cantadas). Nesse sentido, “That’s life” (de Sinatra) tem imenso valor simbólico, já que é a música que fala de alguém que apanhou muito da vida, porque ela (a vida) é assim, mas que, ainda assim, não vai desistir porque isso não é da sua natureza.

Existe uma preocupação de que “Coringa” seria estímulo para que os incels, identificando-se com o Palhaço do Crime, passem a agir como ele – ignorando que ele vive o suficiente para se ver como vilão, equivocando-se ao interpretar a si mesmo como herói. Talvez esse perigo exista, mas pessoas como essas já estão suficientemente propensas a praticar atos agressivos, encontrando estímulos nas fontes mais ingênuas, se necessário. O filme não serve para que incels se identifiquem (como se a obra fosse um espelho), mas que sejam identificados (porque, na verdade, a obra é uma janela). Fingir que esse tipo de vilão não existe não faz com que ele deixe de existir.