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“COZINHAR F*DER MATAR” – O escorpião e o sapo [44 MICSP]

Atribui-se a Esopo a famosa fábula do escorpião e o sapo. Certo dia, o escorpião queria atravessar um rio onde estava o sapo e, não sabendo nadar, pediu-lhe ajuda. O sapo, com receio de que o escorpião o picasse, negou o pedido. Após muita insistência, o sapo aceitou levar o escorpião em suas costas de um lado ao outro do rio, concordando com o seu argumento: se o picasse, os dois morreriam. Durante a travessia, o escorpião realmente picou o sapo, que, antes de morrer, perguntou por que foi picado. A resposta: “é da minha natureza”. Em COZINHAR F*DER MATAR, o filme é o escorpião e o espectador é o sapo.

Jarik é um rapaz tímido que trabalha como motorista de ambulância e é aparentemente dedicado à família – esposa, pais e filhos. Blanka, sua esposa, usa os filhos para chantageá-lo e conseguir o que deseja. Entretanto, ele sente enorme ciúme dela e não consegue cogitar a vida sem a mulher. Para solucionar um novo impasse gerado por Blanka, que impede Jarik de ver os filhos, o filme aborda versões da sua conduta que podem resultar em êxito para atingir seu objetivo.

(© Cineart TV / Divulgação)

A ideia da fábula mencionada vem à mente por duas razões. A primeira é o simbolismo do sapo, presença constante no longa (na lagoa, no animal de pelúcia e na música cantada pela mãe a Jarik), sugerindo a ideia de transição. Talvez o protagonista esteja passando por um momento de transição em sua vida. Não há certeza em afirmar porque o filme é bastante nebuloso em suas ideias, o que não é positivo, nesse caso, na medida em que há uma enorme bagunça no roteiro de Mira Fornay. A ideia de “se”, que surge no prólogo, também permite uma associação entre a fábula e a película: a avó somente permitirá a entrada de Jarik em casa se Blanka der as chaves, Blanka dará as chaves se a sogra der o apartamento – e assim por diante. O que parece uma narrativa engenhosa é na verdade um convite ao tédio.

Cozinhar f*der matar” é uma mistura de cinema do absurdo com vulgaridade infindável. Uma idosa com crianças recebe com naturalidade uma arma na propriedade em que se encontra trancada. O protagonista não pode ir ao mercado sem ser seguido por uma comitiva de mulheres. Existem diversas mensagens ocultas ou subliminares (o trabalho de Jarik para representar seu altruísmo, o beijo que dá nos pés de Blanka traduzindo a sua devoção etc.), todas, contudo, extremamente tolas ou vazias. É evidente que o filme quer tratar dos relacionamentos familiares abusivos, porém o melhor caminho não parece ser a espetacularização da nudez e da violência. “Miss violence” e “Violência gratuita”, por exemplo, têm doses altas de agressões, mas elas fazem um sentido coeso. A produção de Fornay não tem um contexto, os acontecimentos simplesmente acontecem. Saem ideias esparsas como sexualidade, identidade de gênero e ciúmes, mas nada é satisfatório – exceto o fim da produção, que tarda imensamente a se concretizar.

Sobram personagens inúteis, como Jana e Peter. Há erros de continuidade (o suor de Gustav desaparece entre um corte e outro, reaparecendo logo após). Quando Jarik se esconde das mulheres no mercado, a cena é quase cômica enquanto, na verdade, deveria ter coerência com o núcleo da obra, que é de uma crítica às agressões entre familiares. O grupo parisiense Gotan Project é dolorosamente desperdiçado em um filme que não merecia sons de tamanha qualidade em sua trilha. No máximo, a contraposição entre os ambientes fechados – o apartamento da mãe de Jarik e a casa do pai do protagonista – é bem feita: o pai mora em um local mais amplo e confortável, o que combina com sua personalidade mais calma; a mãe está em um apartamento muito menor e apertado (sensação ampliada pelo preenchimento massivo do espaço), uma clausura que se traduz em seu temperamento. Isso não é qualidade do filme, é uma tentativa de pescar alguma virtude nele. Tentativa evidentemente vã.

Como já mencionado, o espectador é o sapo que morre pelo veneno do escorpião. Um veneno deveras fatal: sobreviver a “Cozinhar f*der matar” sem dormir é uma tarefa hercúlea, quiçá impossível. São cento e dezesseis sofridos minutos. O filme poderia ser apenas chato ou apenas ruim, mas sua natureza é a pior possível – chato e ruim.

* Filme assistido durante a cobertura da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.