“CRUELLA” – O punk rock mal adaptado
Cansativo e desnecessário, CRUELLA é uma reciclagem tripla que desperdiça excelentes atrizes e uma moda ousada em prol de uma narrativa enfadonha. Considerando o público-alvo infantil, certamente uma estrutura mais protocolar teria sido uma melhor escolha, ao invés do formato arrastado e de duração extensa (mais de duas horas). Os exageros do punk rock foram mal adaptados.
Desde criança, o sonho de Estella é ser uma designer de moda. Quando consegue trabalhar com a Baronesa Von Hellman, ela acaba descobrindo fatos sobre seu passado que abrem caminho para que ela desenvolva um alter ego. Espelhando-se na Baronesa e em seus próprios planos, Estella se torna Cruella, alguém cujos interesses são apenas relativos a si mesma.
A escolha de Emma Stone para o papel de Cruella não poderia ser melhor. Mesmo que subsista uma sombra de comparação com o trabalho de Glenn Close em 1996, é necessário iluminar o fato de que a fase de vida de Cruella é muito diferente (a de Close é mais experiente e inescrupulosa). Stone é ótima no câmbio entre Estella e Cruella, pois a personalidade das duas é substancialmente distinta: a primeira tem grandes sonhos e pratica pequenos golpes; a segunda se coloca em um patamar de fama e sucesso que lhe permite agir de maneira inconsequente. O trabalho da atriz é impecável, o problema está nas personagens.
Das duas, uma: a estória de Kelly Marcel e Steve Zissis é ruim, ou é apenas mal desenvolvida pelo roteiro de Dana Fox e Tony McNamara. Há evidente falta de originalidade, problema do projeto em si, que é uma reciclagem tripla, na medida em que mistura “101 Dálmatas”, “O Diabo veste Prada” e “Malévola”. Do primeiro, extrai-se o universo diegético; do segundo, os perfis principais (a Baronesa como Miranda, a mulher de sucesso com coração gélido, Estella como Andrea, a jovem sonhadora que aprende a ser como a icônica chefe); do terceiro, a ideia de repaginar uma vilã. Isso não seria um defeito grave se o desenvolvimento do plot não fosse pavoroso.
O roteiro começa, literalmente, com o início da jornada de Estella, mostrando que desde a infância ela não era passiva com qualquer tipo de adversidade – seja o bullying dos colegas, seja a repreensão escolar. O arco infantil da protagonista, porém, não é essencial e apenas alonga um filme que, depois de uma hora e meia, parece interminável (e os quarenta e cinco minutos restantes são esticados em demasia). O diretor Craig Gillespie é completamente inábil para dar fluidez a “Cruella”, sobretudo no nível da frequência. A ordem dos eventos é repetitiva a partir do momento em que surge Cruella, que participa de um jogo de gato e rato com a Baronesa interpretada por Emma Thompson. Assim como Stone, Thompson adota um perfil debochado da sua personagem coerente com o tom farsesco da trama. Pode parecer contraditório, mas as sequências de ação são entediantes, principalmente pela questão da frequência. Quando Cruella é novidade, o ritmo do longa é acelerado, contudo a disputa com a Baronesa parece um cachorro correndo atrás do próprio rabo.
Exemplo da falta de fluidez é a aproximação entre (anti-)heroína e vilã: aquela consegue perante esta uma confiança inverossímil, pois a Baronesa não gosta de ninguém. Em poucos minutos, Estella já é seu braço direito e a vê humilhando todos os demais. Quando surge Cruella, o filme abraça a farsa e, por consequência, o ridículo, fazendo com que, no máximo, as crianças riam dos atos patetas de Jasper (Joel Fry) e, principalmente, Horácio (Paul Walter Hauser). O arquétipo conhecido como “fora da lei” (alguém que tem prazer em chocar e quebrar as regras) se encaixa tanto com Estella quanto com Cruella, porém há uma dificuldade em dar foco à protagonista, cujos planos só ganham concretude na metade do filme, desenvolvendo-se de maneira, como já dito, arrastada.
Talvez fosse possível interpretar o ritmo como reflexo da filiação cultural do longa. O punk rock é coerente não apenas com o local e a época (Londres dos anos 1970) como também com a atitude da protagonista e, por vezes, o seu visual. O vestuário de Cruella só não é tão agressivo e chocante quanto seu cabelo e sua maquiagem, capazes de chamar a atenção de qualquer um (especialmente na época). O design de produção é razoável, dando tons castanhos ao esconderijo de Estella e seus amigos, bem como à loja Liberty, sugerindo o mundo comum em que se encontrava, estética substituída pelos tons esverdeados do trabalho com a Baronesa, transmitindo maior empolgação.
As sequências elípticas das aparições de Cruella são deslumbrantes em razão do excelente trabalho da equipe de figurino, reforçando o punk rock como atitude transgressora. Por outro lado, a estética musical não é igualmente coesa: apesar da presença do rock – como Ike e Tina Turner (“Whole lotta love” e “Come together”) e Electric Light Orchestra (“Livin’ thing”) -, Bee Gees (“Whisper whisper”) e Nina Simone (“Feeling good”) não eram do mesmo cenário musical. Além disso, a trilha é bastante clichê (“One way or another”), parecendo um clipe, e a canção original (“Call me Cruella”), presente apenas nos créditos, está aquém da qualidade de Florence and the Machine.
“Cruella” não é apenas um filme de excessos, pois isso implicaria alguma fidelidade ao punk. A produção dilapida um pouco o legado de um clássico Disney, o que “Malévola” (o primeiro, é claro) não fez por conseguir concatenar suas ideias relativas à explicação da vilã. O trauma de Estella não convence e o longa não tem a veia revolucionária e contraventora do punk. Tem apenas duas grandes atrizes em um figurino estonteante.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.