Nosso Cinema

A melhor fonte de críticas de cinema

“DENTE POR DENTE” – Uma soturna carga fatalista

São muitas as referências presentes em DENTE POR DENTE para criar as bases de uma história policial. Desde o símbolo no casaco do protagonista, que remete a “Drive“, até o universo melancolicamente corrupto de filmes sul-coreanos do gênero. Para todos os efeitos, a produção brasileira não referencia o mundo cinematográfico para compor uma colagem vazia de elementos reciclados, mas para criar sua própria atmosfera fatalista (mesmo que esse fatalismo por vezes enfraqueça a narrativa).

(© Vitrine Filmes / Divulgação)

Na trama, Ademar é sócio de uma empresa de segurança que presta serviços a uma construtora em São Paulo. Quando Teixeira, seu parceiro de negócios, desaparece, ele começa a investigar o ocorrido. A investigação se mostra arriscada a partir do momento em que um grande esquema criminoso interfere na vida de Ademar.

Ao evocar traços de outras obras policiais, a direção de Júlio Taubkin e Pedro Arantes desde cedo anuncia como a narrativa insinua tragédias iminentes. A trilha sonora cria sensações lúgubres de um perigo insondável à espreita, através do suspense de batidas rítmicas que lembram os impactos de uma marreta (algo que se relaciona às mortes da trama). A fotografia funde de maneira curiosa as percepções de um pesadelo e ambientes soturnos prestes a deflagrar a violência durante as noites (especialmente quando as sombras e a escuridão sugerem alguma ameaça). Já o design de produção complementa a fotografia ao priorizar cenários em ruínas ou de construção inacabada – essa escolha de locações desenha um retrato pessimista de São Paulo e prepara o terreno para o debate social do roteiro.

O estilo atmosférico não apenas busca referências externas como também tenta inserir seus próprios aspectos sensoriais. Desde o princípio, Ademar parece perdido entre a realidade e os sonhos sem conseguir distinguir um do outro por não dormir como deveria. Desse modo, faz todo sentido para a narrativa assumir a condição do protagonista e jogar os espectadores em uma dúvida constante sobre o que seria real e onírico – a montagem encadeia cenas do cotidiano do personagem com abstrações fantásticas de eventos de sua vida, expondo a natureza não racional dos pesadelos. Com o passar do tempo, alguns aspectos recorrentes perseguem Ademar enquanto ele tenta desvendar um mistério que o invadiu: por exemplo, os sonhos se revelam premonitórios, uma figura esguia e sombria aparece refletida em espelhos ou mergulhada nas sombras e dentes são arrancados de várias pessoas em alusão às vítimas reais ou resultantes de delírios do homem.

Se por um lado o fatalismo da narrativa articula destinos inexoravelmente trágicos para os personagens, por outro antecipa aspectos estilísticos que se mostram frágeis desde a primeira aparição. A começar pela narração em voice over de Ademar, as estratégias discursivas que comentam os impactos dos sonhos se tornam precocemente precários e não escapam dessa condição até o desfecho. Embora a narração não seja intrusiva e excessiva, ela se apoia em frases de efeito pseudointelectuais (“o que desaparece pode voltar” e “não existe passado nem futuro, apenas o presente”) e em afirmações ilustrativas em demasia (a explicação para o título já seria intuitiva sem precisar escancará-la discursivamente). Consequentemente, a intenção de aumentar a carga dramática da trama e se enfraquece a cada nova aparição das referida técnica.

À medida que a história progride e a investigação revela seus resultados, fica evidente também que o filme desde o início não se preocupa com o desenvolvimento dos personagens. Esse cenário fatalmente não se altera nem para o protagonista, resumido pobremente ao arquétipo do “homem sem nome”, já que se conhece seu background, nem possui algum conflito próprio – assim, Juliano Cazarré somente precisa compor uma figura imponente fisicamente e envolvida por se ver jogada em um perigo do qual não tem responsabilidade. Já em relação aos personagens coadjuvantes, o vazio dramático é ainda mais nítido e suas participações são pequenas aparições pouco expressivas: a viúva sem função interpretada por Paolla Oliveira, o policial de motivação dúbia vivido por Aderbal Freire Filho e a empresária de interesses escusos interpretada por Renata Sorrah.

Mesmo com as fragilidades no uso da narração e do elenco, os diretores conseguem desenvolver a atmosfera unindo diferentes abordagens. O sobrenatural se inicia com a apropriação do onírico pelas cenas e, de forma orgânica, aborda concepções sobre a vida após a morte; além de entrelaçar essas duas possibilidades na cidade de São Paulo, em especial os contrastes entre interesses de grandes construtoras para o espaço urbano e as ocupações de pessoas sem moradia. Por sua vez, a progressão dessa última subtrama tem o cuidado de não soar didática e de conceder espaço para o público refletir acerca dos sentidos de uma violência com forte recorte de classe. Por sinal, a escalada de violência assume um viés mais complexo quando a investigação de Ademar descobre corrupção, genocídio e vingança.

Cada momento violento visto em “Dente por dente” preenche a carga soturna e carregada do filme. A abordagem dura e desesperançosa atinge um fatalismo em muitos níveis: a brutalidade de um mundo excludente que deixa marcas nas relações mundanas; os desdobramentos dessa agressividade reverberam em outros planos de existência; a lógica da violência não escapa das diferenças econômicas de um sistema que se impõe quando muitos têm tão pouco; e os problemas de linguagem e dramaturgia se mantêm inalterados como se não fosse possível outro efeito ao longo da narrativa. Assim sendo, a ideia de fatalidade pode ser tanto benéfica quanto prejudicial, dependendo dos usos artísticos, mesmo que a conclusão de Ademar seja uma fim pouco esperado para um destino também trágico.