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“DESTACAMENTO BLOOD” – Guerra não é a resposta

A palavra “blood”, em inglês, significa sangue. Em DESTACAMENTO BLOOD, sangue é algo que não falta – não o sangue banalizado na maioria dos filmes de ação, quase sem significado, mas sim um sangue de valor simbólico, justamente em momento oportuno para reforçar que BLACK LIVES MATTER (vidas negras/pretas importam).

No longa, quatro amigos negros – Paul, Otis, Eddie e Melvin -,  veteranos da Guerra do Vietnã, retornam ao país para desenterrar assuntos deixados para trás envolvendo Norman, o líder do seu esquadrão. Ainda que não seja o mesmo Vietnã bélico que encararam anos atrás, os desdobramentos da Guerra, para eles e para os locais, ainda permanecem – e em proporção maior do que querem admitir.

O filme de Spike Lee é bastante fiel à sua cinebiografia ao abordar assuntos como racismo e cultura negra (ou, talvez mais especificamente, afro-americana). Em “Destacamento Blood”, a conexão dos seus temas rotineiros à matéria central do filme é bastante original. Em uma das falas, descobre-se que, na época da Guerra do Vietnã, a população negra representava onze por cento da população dos EUA, porém, de todos os soldados enviados, mais de trinta por cento era composto por negros.

Netflix / Divulgação)

Embalado por esse mote (a relação entre o Vietnã e os afro-americanos), o diretor não poupa o público de imagens chocantes e de extrema violência (como no destino dado a Eddie,) – eis o primeiro sentido do “blood” do título. Por outro lado, ele é extremamente hábil no que se propõe, transitando com facilidade entre o tocante (como quando Paul encontra Norman na floresta, com uma luz vertical bem clara, quase celestial) e a tensão (na sequência com David na mina, os sons exclusivamente diegéticos inserem o espectador). Para não dizer que é tudo trágico e pouco animador, nos créditos, as imagens contemplativas das belezas naturais do Vietnã são um alento.

Do ponto de vista da linguagem, Lee faz pequenas inserções reais na diegese – por vezes, com uma montagem um pouco agressiva -, como discursos de famosos (Ali e King, por exemplo), não raras vezes em tom ácido (associando Trump às fake news), além de associações visuais pertinentes, como a que é feita com o filme “Apocalypse now”. No último caso, o sol do Vietnã, entre o rosado e o alaranjado (similar ao que é visto no épico de Coppola), surgindo em tela cheia e simulando a abertura dos olhos do espectador, é apenas um dos meios pelos quais o diretor mexe na razão de aspecto para enriquecer a sua obra. Assim, nos flashbacks, ela fica quadrada; quando as imagens são filmadas dentro da própria diegese (uma personagem usando câmera), novamente o quadro é distorcido.

O roteiro, escrito pelo cineasta em conjunto com Danny Bilson, Paul De Meo e Kevin Willmott, pode parecer simples à primeira vista, contudo a sutileza de algumas camadas é determinante para revelar um texto bem escrito. Nesse sentido, a participação de dois artistas franceses, ainda que em papéis secundários, é uma menção simbólica inteligente sobre os antecedentes da Guerra do Vietnã (e, em ao menos um momento explícito, deixa clara uma “rixa” entre franceses e estadunidenses). Quando o guia do quarteto explica que, a despeito do fim da guerra, a inimizade entre a população do Norte e a do Sul do Vietnã ainda existe, este é apenas um dos desdobramentos da batalha histórica.

O filme tem noção de que existem feridas ainda não cicatrizadas nas personagens – e, em visão mais ampla, nas próprias populações envolvidas -, não tendo receio algum em “cutucar” as feridas. Qualquer som semelhante ao de tiros é suficiente para levar os quatro veteranos ao chão. Todos estão profundamente traumatizados, especialmente Paul, que é o mais irritadiço e de personalidade forte, o que causa atritos com os demais. Eddie (Norm Lewis) e Melvin (Isiah Whitlock Jr.) não têm grande destaque; Norman (Chadwick Boseman) tem maior função motivadora e de backstory; David (Jonathan Majors) tem um arco dramático acessório ao de Paul, que, na prática, é o principal.

A escalação de Delroy Lindo para o papel de Paul não poderia ser mais acertada: o ator já estava excelente em diálogos cáusticos (condizentes com a personagem); quando o roteiro dá a ele monólogos, o trabalho é digno de prêmios. Sua atuação pulsante faz com que o público, ao invés de encará-lo como uma espécie de antagonista, preste atenção aos motivos pelos quais ele é tão raivoso. Em uma de suas falas, ele se revolta com o comportamento do filho David, que tem “seu próprio sangue”. Mais uma vez, o sangue é elemento fundamental do discurso, que não é sempre negativo (já que o quarteto se denomina “Blood” e seus integrantes são “bloods”).

O que é triste não é o sangue derramado em uma guerra. Triste é que ainda há sangue negro derramado em guerras simbólicas, como a decorrente da perseguição de alguns policiais à população negra – o que, como se sabe, não é exclusividade dos EUA. As palavras entoadas na voz doce de Marvin Gaye, que tocam em “Destacamento Blood”, nunca foram tão atuais: “guerra não é a resposta / apenas o amor pode conquistar o ódio / você sabe, temos de achar um jeito / de trazer algum amor aqui e agora”.