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“DEVAGAR” – Amor sem sexo (não necessariamente) é amizade [47 MICSP]

Nas sábias palavras de Rita Lee, “amor é pensamento, teorema; amor é novela, sexo é cinema”. Quando ela cantava “amor sem sexo é amizade, sexo sem amor é vontade”, o acerto talvez não fosse o mesmo, pois amor sem sexo pode permanecer sendo amor. É isso que o casal de DEVAGAR tenta provar ao se relacionar.

Elena é dançarina de dança contemporânea, Dovydas é intérprete de linguagem de sinais. Os dois se conhecem quando ela vai dar aulas para uma turma de pessoas surdas, com o auxílio dele. O entrosamento entre os dois é muito rápido, porém quando ele revela a ela que é assexual, o romance pode deixar de florescer.

(© Garagefilm International / Divulgação)

O sexo pode ser bom, mas, como mostrado no prólogo, pode ser ruim. A novidade do longa é uma situação pouco conhecida e pouco falada, relativa às pessoas que não sentem atração sexual ou necessidade de ter relações sexuais. Para Elena, acostumada com romances sexuais, um romance assexual é incompreensível à primeira vista. Que há romance, porém, não há dúvida. A atmosfera criada pela diretora e roteirista Marija Kavtaradze é extremamente carismática, fazendo com que o espectador, tão rápido quanto a paixão dos dois, torça para que o relacionamento dê certo. Faz parte dessa atmosfera a fotografia levemente granulada e a escolha dos enquadramentos, reiteradamente empregando two-shot frontal para aproximar e delimitar um espaço privado para Elena e Dovydas.

A química deliciosamente abusiva e o carisma de Greta Grineviciute e Kestutis Cicenas quando estão juntos são fatores elevados por escolhas certeiras de Kavtaradze, como o plano-detalhe da primeira vez em que Elena e Dovydas ficam de mãos dadas. Na trilha, músicas como “Higher”, “I think I’m falling for you” e “Anemons” são coerentes com o carisma do casal, fazendo parte, muitas vezes, de cenas hipnotizantes – é o caso de “We fucked it up”, quando se vê pelo reflexo de Dovydas que ele está espelhando os movimentos de Elena. A progressão do romance é orgânica, jamais forçada, o que inclui os passos em direção à intimidade. São inúmeras cenas charmosas, como a que Dovydas tenta se equilibrar no quarto dela, mas o texto também o é, como a referência ao McDonald’s. Os diálogos são agradáveis e, mesmo quando o casal discute, inexiste agressividade, apenas o compartilhamento de frustrações e receios, algo comum também para o amor com sexo.

Quando a sexualidade se torna tema, o texto, além de pedagógico, não recai em um romantismo piegas, superficial e evidentemente inverídico. Dovydas encontra dificuldade em falar sobre ser assexual, razão pela qual compartilha a informação repentina e mecanicamente, quase como um soluço. Naturalmente, Elena demonstra ignorância sobre a assexualidade, o que, todavia, se transforma em insegurança. Aparentemente, Dovydas é tranquilo e altruísta a ponto de agir como age em relação a Vilius, porém mesmo alguém com autoconhecimento no quesito sexual pode também ser inseguro (basta ver o que faz depois). A insegurança de Elena se traduz nas falas (“talvez só não goste de mim”) e nos atos (ao ir atrás de Vilius), mas o que a torna mais confortável (do que com outros homens) é que Dovydas não a trata como objeto (tal qual outros homens).

Mais do que o sexo, o corpo se torna um componente do relacionamento. Em seus trabalhos, os dois têm seus corpos como instrumentos. Enquanto ele facilita a comunicação, ela deseja ajudar no autoconhecimento e na autoestima de seus alunos. Os ensaios de Elena são filmados de perto, com ruídos intradiegéticos; os vídeos de Dovydas também se apresentam em planos fechados, com a música que ele está traduzindo para a linguagem de sinais. As cenas de dança são de entrega, refletindo o ânimo de Elena, então, por exemplo, quando malsucedida uma tentativa de ter relação sexual, na cena seguinte o orgasmo parece prestes a vir pela dança.

O aprendizado de Elena e Dovydas é que o corpo do outro deve ser respeitado e que, para conseguirem construir um relacionamento – uma construção diária, provavelmente -, é necessário partir da única regra, que é a inexistência de regras preconcebidas. Não há padrões necessários e inevitáveis, tampouco caminhos inexoráveis. Os versos cantados por Rita Lee são belos e aplicáveis a muitos. A muitos, não a todos.

* Filme assistido durante a cobertura da 47ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).