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“DIAS PERFEITOS” – Cinema absoluto

Nas redes sociais, uma imagem do cineasta Martin Scorsese com as mãos erguidas e a inscrição “Absolute Cinema” circula como um meme. Inicialmente, ela era atribuída apenas a filmes que impactavam o espectador de forma intensa e visceral. Com o passar do tempo, passou a ser atribuída a outras áreas e produtos culturais desde que fossem grandiosos, curiosos, engraçados ou expressivos visualmente. DIAS PERFEITOS é o exemplo de como as certezas monolíticas do que um cinema poderoso pode ser são derrubadas uma a uma.

(© O2 Play/ Divulgação)

Muitos pré-julgamentos podem aparecer nos primeiros minutos da projeção quando acompanhamos um dia na vida de Hirayama. Ele é um senhor de meia idade que limpa banheiros públicos em Tóquio. A rotina diária que leva é metódica e silenciosa, completamente distinta da contemporaneidade barulhenta e acelerada ao seu redor. À medida que os dias passam, o homem se encontra com pessoas inesperadas que revelam um pouco mais sobre ele e mexem com seu cotidiano.

Hirayama acorda. Escova os dentes. Apara o bigode. Irriga as plantas. Coloca o uniforme. Recolhe moedas, chave e carteira. Escuta músicas em fitas cassetes no carro. Limpa os banheiros. Lancha em uma praça. Observa a natureza. Toma banho em uma sauna. Toma uma bebida em um bar. Lê um livro antes de dormir. É possível resumir o primeiro dia do protagonista exibido assim. Grande parte dessas ações tem pouquíssimos diálogos, mas todas são filmadas com profunda delicadeza por Wim Wenders. O cineasta faz a narrativa assumir a personalidade do personagem, alguém que não depende apenas da fala e não marginaliza os outros sentidos. Ele pode priorizar a visão para contemplar o movimento das árvores sob o vento ou a audição para se deleitar com os sons da natureza. Em sintonia com isso, Wim Wenders reivindica a sensibilidade do público para perceber a bondade de Hirayama por começar a limpeza pelos banheiros de deficientes e de mulheres e deixar respeitosamente o local quando uma pessoa entra para usá-lo.

A pergunta ‘Por que há poucos diálogos?’ é a primeira pergunta entre outras que podem ser feitas no início da projeção. ‘Por que nada acontece?’ ou ‘Por que seria interessante assistir a uma sucessão de dias repetidos?’ podem vir em seguida. Mesmo que o primeiro questionamento esteja contaminado pela necessidade de hiperestímulos constantes da contemporaneidade, a reflexão pode seguir outros rumos. Assim como Chantal Akerman fez “Jeanne Dielman“, Wim Wenders trabalha o tempo narrativo ampliando a duração dos planos e controlando o ritmo das ações para que siga um fluxo menos convencional. Além disso, apesar de a estrutura dos dias se mantiver a mesma, apresenta alterações consideráveis. Interage com o colega de trabalho e o interesse amoroso dele por conta das fitas cassetes e com uma pessoa desconhecida graças ao jogo da velha feito ao longo de dias, frequenta outro bar no qual a dona canta uma música para os clientes e recebe a visita surpresa da sobrinha. As mudanças de rotina ajudam a dar novas facetas para o protagonista, como a empatia pelo colega, e maior complexidade para o mundo em que ele vive, como as contradições da escolha por um modo de vida mais recluso.

Cada mudança que acontece no dia a dia também direciona o olhar para realidades que não podem ser idealizadas. Há problemas, dificuldades, contradições, conflitos e frustrações no mundo habitado por Hirayama. O preconceito se faz presente quando ele ajuda um menino perdido e a mãe, aflita com a situação, não agradece e ainda limpa a mão da criança. Trata-se de uma sequência que evidencia muito bem a invisibilização de indivíduos considerados inferiores. Em outra passagem, o choque cultural e geracional com a sobrinha aparece com relação à fonte de busca de músicas para ouvir, especialmente por conta da dúvida do homem sobre o que seria Spotify. Além disso, as opressões impostas pelo capitalismo não podem ser negligenciadas, como fica visível na demissão do colega de trabalho. Após o incidente, o protagonista precisa fazer horas extras para compensar a ausência de um funcionário, algo típico da precarização dos trabalhadores. Os fatores internos à história do personagem são outros elementos que vêm à tona para colocar em reflexão quem é o homem que limpa os banheiros.

O que fez Hirayama levar uma vida tão silenciosa, de uma rotina pacata e trabalhar com o que trabalha? Questões como solidão, fuga de uma realidade indesejada e aproveitamento da simplicidade da vida podem ser invocadas e discutidas ao longo da narrativa, especialmente quando a dimensão familiar do protagonista surge. A presença da sobrinha começa a demonstrar um forte contraste entre diferentes partes de sua família ou, como o tio afirma, mundos opostos. Já a entrada em cena da irmã sugere a existência de conflitos e ressentimentos mal resolvidos em seu passado, embora não consigam ser verbalizados nem apagar o carinho fraternal entre eles. Mais do que tentar combinar uma explicação que dê conta de uma vida solitária, de escapismo e olhar para o que costuma ser desvalorizado, a figura em si destaca o poder de fazer escolhas que não precisam se adequar a um senso comum consagrado. Importante para isso é a construção feita por Koji Yakusho, um ator tão expressivo que faz transbordar uma paz de espírito em cada atitude trivial, expressão singela e relação genuína.

As características do protagonista podem ser desenvolvidas, inclusive, através da ativação de outros sentidos do público. Se uma pergunta nos moldes de ‘Como saber mais sobre um personagem que pouco fala?’ for feita, a resposta pode propor uma atenção maior aos eventos de sua rotina como já foram exemplificados e às canções ouvidas nas fitas cassetes no trajeto de carro até o trabalho. O ato em si de escutá-las em um suporte tecnológico de outros tempos e o interesse por produções dos anos 1970 e 1980 já traz em si indícios sobre um personagem que pode ser visto precocemente como preso ao passado, mas preserva seu amor por artefatos que carregam grande importância pessoal (o que, por exemplo, contrasta com o esforço de seu colega de trabalho para vender as fitas valiosas). As próprias canções reproduzidas são capazes de dar o tom emocional de Hirayama em momentos diversos, um misto de melancolia e prazer sentido a partir, por exemplo, de “(Walkin’ Thru The) Sleepy City” de The Rolling Stones, “House of the rising sun” de The Animals e “Redondo Beach” de Patti Smith.

Entre as mudanças que ocorrem dia após o outro, Hirayama passa a lidar com momentos que não são prazerosos. Ele lida com situações que criam determinadas dificuldades, despertam uma espécie de constrangimento diante da privacidade alheia e toma contato com tragédias inevitáveis. Reencontrar com a irmã, presenciar uma cena de exposição da vulnerabilidade da mulher dona do bar onde frequenta e saber de uma notícia ruim sobre o destino de outro homem expõem os cuidados necessários para a relação entre o indivíduo e sua própria vida. O protagonista vivencia o sentimento de que a vida não produz picos extremos de felicidade, assim como as doses de infelicidade não precisam ser exacerbadas. A sequência de dias que se sucedem em “Dias perfeitos” não tem um desfecho clássico, uma trama evidente para ser desenvolvida nem uma resolução tradicional do arco do personagem. Porém, há um clímax que permite ao público deixar de lado perguntas sobre as razões para o personagem ser assim, as cenas serem construídas de certa maneira e o filme ser de tal forma. É possível contemplar o que o cinema pode ser a partir do som de “Feeling good“, interpretado por Nina Simone, saindo do toca fitas e do close em Koji Yakusho sorrindo e chorando.