“DIAS” – Quase um transe [44 MICSP]
Existem duas maneiras de enxergar DIAS, novo filme do renomado diretor Tsai Ming-liang. A primeira delas é que o filme é lento, chato e etéreo em demasia. Não seria uma visão absurda: cerca de duas horas, pouco mais de quarenta cortes, ausência de diálogos (ao menos com legenda) e cenas quase sem movimentação são fatores que podem tornar o longa antipático. Entretanto, uma segunda forma de ler o filme seria encará-lo como um experimento sobre a solidão. Pode ser desafiador assistir a um filme como este, mas é justamente a sua heterodoxia que o torna extraordinário.
O filme mostra dois homens solitários – um mais jovem, Non, e um mais maduro, Kang -, com estilos de vida bem distintos, que se encontram para um longo momento que foge da monotonia a que estão acostumados. É um respiro. Juntos, eles podem fugir da realidade, podem até mesmo encontrar um elo duradouro de um em relação ao outro, mas não podem exterminar a imensa solidão que faz parte das suas vidas.
O longa conta com alguns planos simbólicos, de um lado, e planos narrativos, de outro. É necessário que o espectador faça a sutura, exercendo um papel ativo (isto é, mais ativo que o normal) na interpretação da estória. Evidentemente, não se trata de uma sequência de planos sem sentido, são significantes cujo significado precisa ser decifrado pelo público, que não o recebe (o significado) didaticamente através de diálogos expositivos, por exemplo – aliás, os raríssimos diálogos não têm legenda. A narrativa não está posta, precisa ser extraída, portanto.
Percebe-se que Kang (Kang-sheng Lee) e Non (Anong Houngheuangsy) têm condições financeiras muito distintas. O primeiro mora em uma casa grande e vai a um hotel para encontrar o segundo, que, por sua vez, reside em uma estrutura precária. A casa de Kang tem uma banheira onde ele procura relaxar, eliminar a dor no pescoço que o aflige – uma dor cuja origem pode bem ser a asfixiante solidão diária. O hotel não é exatamente uma estrutura acolhedora, é um local impessoal cuja cama não está pronta para o que Kang pretende fazer com Non. A roupa de cama fica em um canto, assim como a mala levada pelo hóspede. A residência de Non tem paredes sujas, não possui móveis, tudo parece improvisado. Há uma discrepância econômica clara entre eles.
Entretanto, os dois têm em comum a solidão. Um deles é filmado de longe, atrás de uma espécie de grade: está em uma prisão, em sentido metafórico. Não pode fugir da própria condição. Quando Kang sai e admira a paisagem de montanhas em meio a um gramado alto (em um amplo espaço vazio), sobressai o verde, mesmo verde presente nas folhas que Non limpa com mangueira em seu apartamento. A proposta de Tsai Ming-liang é também contemplativa, ora com minutos destinados a observar carros trafegando em uma estrada, ora para ver o reflexo do sol nas janelas.
Parece que o filme travou, mas não, a lentidão e a contemplação são compatíveis com o deserto de solitude das duas personagens. O diretor é naturalista ao extremo, seu filme é quase um documentário observacional. Não há espaço para o sôfrego. A cena de tratamento para a dor corporal sentida por Kang demora longos minutos, filmada por variados ângulos, sempre com a câmera estática (o que é a regra da obra, salvo em um único plano, em que a câmera se movimenta junto a Kang). Os cortes não são afoitos ou despropositados, ao revés, exercem sempre alguma função. Por exemplo, enquanto Non dorme à noite, aparentando tranquilidade, ainda que só e no escuro, um corte basta para contrapô-lo a Kang, também deitado, mas no claro (já é dia!), se remoendo pela dor que não se esvai. Lá fora, sons distantes do carro; dentro, um silêncio torturante.
Não há músicas extradiegéticas em “Dias”. A única música é diegética e funciona como um elo entre Kang e Non. Na lanchonete, eles conversam, mas são filmados de longe – não se sabe sobre o que conversam, o que não importa, pois já estão conectados. A cena erótica é lenta e radicalmente naturalista, jamais apelativa. Parte do corpo fica no fora de campo, não precisa aparecer. Há um véu que cobre os dois, mas que não parece incomodar Non (não o torna inerte em casa), apenas Kang. A cortina de cor coral faz com que o sol de fora esquente o quarto e dê a ele uma cor romântica. Mas não há romance, há relaxamento. Kang dorme, chega a roncar!
Existem excessos na produção. Não é necessário, por exemplo, esperar a luz do quarto se apagar quando Kang sai dele. O extremo não é elogiável. Porém, “Dias” se propõe como uma experiência para quem está disposto a aproveitá-la, algo diferente da maioria do que entra em cartaz nos cinemas. É uma obra que alia a contemplação à reflexão, o sensorial ao intelectivo, o erótico ao lúdico. Quase um transe.
* Filme assistido durante a cobertura da 44ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.