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“DOIS IRMÃOS – UMA JORNADA FANTÁSTICA – Jogo de magia no tempo

Deixou de ser novidade afirmar como a Pixar produz animações para qualquer idade com a dose equilibrada de entretenimento e arrebatamento emocional. Por vezes, contudo, essa virtude não foi explorada ao máximo devido à fragilidade de algumas ideias (“O bom dinossauro“) ou à decisão de fazer continuações menos necessárias (“Carros 2“). Ainda que os percalços na trajetória não sejam muitos, é prazeroso ver a empresa novamente chegar ao seu alto potencial: DOIS IRMÃOS – UMA JORNADA FANTÁSTICA é uma nova demonstração de inventividade, diversão e emoção no percurso e na mensagem final.

(© Disney/Buena Vista / Divulgação)

Na recente história original com um universo novo a nos apresentar, a Pixar mostra como as tradições passadas podem coexistir com as transformações da modernidade. Ian e Barley são irmãos que vivem em um mundo onde havia magia, seres e criaturas especiais, aventuras fantásticas e ambientes fantasiosos até a descoberta das facilidades da tecnologia. A partir daí, tudo que era mágico parece ser deixado de lado como pertencente a uma época distante, exceto para os protagonistas. Eles embarcam em uma jornada incrível para reviver algum tempo ao lado do pai já falecido.

A passagem entre as eras e o entrelaçamento de traços de cada um delas são apontados na sequência de abertura, expressiva de como funciona o universo diegético. Tendo como pano de fundo uma narração em voice over que contextualiza como a magia perdeu gradualmente espaço para as invenções tecnológicas, as mudanças de costumes e vivências são contadas com grande beleza visual: uma panorâmica percorre um período em que magos, feiticeiros e bruxos praticavam encantamentos, o espaço físico se assemelhava à Idade Média, os humanos conviviam com elfos, fadas e dragões e o senso de aventura era constante; para, em seguida, contar como a tecnologia cresceu para resolver as necessidades cotidianas (celulares, controle remoto, eletricidade…) e a fantasia se adaptou a rotinas urbanas tradicionais, como o dragão convertido em animal de estimação, um centauro transformado em policial e monumentos erguidos em referência às tradições. Logo, percebe-se como o passado existe no futuro na forma de humor (criaturas colocadas em situações distintas) ou de conflitos dramáticos dos personagens principais.

Ian e Barley possuem arcos que refletem a manutenção do passado em períodos seguintes e informam sobre quem eles são. O mais jovem acabou de completar dezesseis anos e, de variadas maneiras, se relaciona com a imagem do pai: veste seu casaco, ouve histórias sobre ele, usa-o como inspiração para mudar de personalidade e até escuta uma gravação antiga para simular uma conversa entre os dois (planos detalhe de fotografias do pai passam ainda mais a sensação do diálogo). O mais velho adaptou o gosto por missões mágicas aos jogos de RPG em que cria narrativas sobre feitiços, figuras fantasiosas e perigos saídos de sua imaginação – assim, mantém um vocabulário típico de tramas medievais contendo lutas, rituais, estilos e arquétipos para passagens comuns do cotidiano como uma simples festa de aniversário -, e se esforça para preservar memórias de outros tempos, por exemplo protegendo uma fonte antiga da destruição.

A partir do momento em que a aventura para reencontrarem temporariamente o pai tem início, o percurso dramático seguido prepara formas diferentes para lidar com o passado e o futuro. Ian precisa enfrentar suas inseguranças e aprender com as novas experiências que tanto deseja ao se abrir para o conhecimento de magia; Barley também passa por sua autodescoberta vivenciando uma missão que antes somente imaginava nas brincadeiras, enquanto encara suas recordações do pai que revelam medos e arrependimentos. Esses arcos dramáticos se potencializam pela escolha de Tom Holland e Chris Pratt como dubladores, emprestando, respectivamente, um tom de voz juvenil para o jovem inseguro e outro cômico para o rapaz mais aventureiro e destemido.

Durante o desenvolvimento da aventura, o diretor Dan Scanlon expande o mundo diegético e reafirma o tema. O segundo ato avança pelas etapas de uma trama de RPG: buscar um objeto mágico valioso, consultar um mapa com o destino procurado, encontrar aliados e inimigos pelo caminho, passar por postos de parada para encontrar outros artigos úteis e superar adversidades/antagonistas. Ao longo da jornada, as cenas de ação também marcam a convivência do antigo com o novo, mesmo que em parte adormecida: o exterior de uma taverna tem uma áurea sombria e ameaçadora enquanto o interior reserva uma atmosfera calorosa de restaurante familiar; e personagens coadjuvantes readquirem traços antigos de suas identidades ao passar por provações, como a mão que recupera um lado guerreiro, fadas que voltam a voar e a dona da taverna que resgata a ousadia de uma aventureira que estimula os outros a se arriscarem.

Quanto mais nos aproximamos do desfecho da trilha mais exemplos de ligação entre passado e futuro aparecem para confirmar sua indissociabilidade. Essa condição transparece na natureza cíclica da aventura e na materialização da ameaça que se opõe aos protagonistas, mas acima de tudo no ressurgimento fantástico do pai. Aprofundando-se ainda mais nas relações familiares, “Dois irmãos – Uma jornada fantástica” destaca tanto a figura paterna quanto o amor fraternal com um clímax emocionante próximo a vários outros criados pela Pixar. Através dele, a sobrevivência da magia preserva o valor do passado e do deslumbramento visual de nossas experiências reconhecendo quem foi e é importante em nossas vidas.