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“DOLITTLE” – Tragédia com requintes de suplício

Em 1967, Rex Harrison protagoniza a versão cinematográfica da obra literária de Hugh Lofting, “O fabuloso doutor Dolittle”. Em 1998, o título é encurtado para “Doutor Dolittle” e Eddie Murphy faz sucesso no papel principal. Em 2001, Murphy retorna, não prosseguindo nas sequências (mais três longas) após queda notória de bilheteria (e de qualidade, é claro). Com título ainda mais reduzido, DOLITTLE é um remake injustificável.

No longa, após um evento triste em sua vida, o doutor John Dolittle abandona seu cotidiano cuidando de animais para se ocultar em meio a eles e evitar contato com humanos. Quando a Rainha da Inglaterra precisa da sua ajuda médica, ele se vê obrigado a agir para não perder seu lar, iniciando uma jornada de muita aventura.

Universal Pictures / Divulgação)

Não é apenas a sinopse que é sem sentido. O roteiro da película, escrito a dez mãos, parte de uma premissa estapafúrdia para se afundar mais e mais no desastre. Aproximando-se da veia de aventura do primeiro longa e se afastando do humor do remake com Eddie Murphy, o texto sai da esfera do singelo ou mesmo do infantil para repousar na estupidez imensurável. Trata-se de um escandaloso idiot plot, que se inicia com uma criança incumbida de salvar a vida da Rainha da Inglaterra e termina com a ideia governante expressa textualmente em narração voice over.

Diante de um urso polar que habita em lugar com temperatura razoavelmente quente, o maniqueísmo da obra é o menor dos defeitos. Defender que o público-alvo do filme é o infantil é um equívoco, vez que uma criança com mais de dois anos de idade seria capaz de compreender o quão ofensivo “Dolittle” consegue ser (do ponto de vista intelectual). Piadas sobre flatulência e gritos histéricos podem ter tido algum valor humorístico em comédias ruins do século XX, mas são mais que ultrapassadas no XXI. O anacronismo faz parte de um conjunto de péssima qualidade.

Stephen Gaghan não consegue extrair nada decente da equivocada proposta da produção. O abismo entre a qualidade final da obra e os nomes gabaritados no elenco de apoio (Antonio Banderas, Michael Sheen, Jim Broadbent, Emma Thompson, Rami Malek e Octavia Spencer) reforça a má qualidade estrondosa do resultado. Capitaneado por Robert Downey Jr., Thompson é a única que chega perto de apresentar um trabalho decente na voz de uma arara. No mais, às dublagens falta emoção e Downey Jr. atua no piloto automático (é apenas o Tony Stark falando com animais). O filme é uma mancha no currículo de todos eles.

Alguns erros são simplesmente imperdoáveis, como o CGI ora ruim, ora péssimo. É assustador perceber que, depois de tigres digitais bem realistas (como em “As aventuras de Pi” e “Mogli: o menino lobo”), “Dolittle” tem um que convence menos que o Diego de “A era do gelo”. Não há um que se salve, do pato à avestruz (o tigre, todavia, é hors concours). A trilha musical é clichê, a maquiagem é nula (como a Rainha teria aquela aparência se estava tão fragilizada?) e algumas cenas são epicamente torturantes (como a do golpe em slow motion).

A palavra-chave é justamente esta: tortura. Uma sessão que deveria ser ao menos divertida se torna dolorosa ao colocar o espectador para enfrentar tamanho desastre. Se na tela a intenção é a aventura com pitadas de comédia, fora dela, para o público, é tragédia com requintes de suplício.

Não merece sequer uma estrela.