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“DONAS DE ALEGRIA” – RELAÇÕES DE AFETO MARCADAS PELA VIOLÊNCIA

Um dos filmes mais bem cotados do My French Festival, DONAS DE ALEGRIA (2019), dirigido por Frédéric Fonteyne e escrito por Anne Paulicevich, aborda o delicado mundo das profissionais do sexo com um frescor notório. Em uma trama permeada pela violência, quase sempre presente na prática diária dessas mulheres, em casa ou no trabalho, os realizadores conjugam uma teia que secretamente exprime um afeto feroz, quase indominável.

Na trama, acompanhamos três mulheres, Axelle, Dominique e Conso, que cruzam a fronteira da França com a Bélgica todos os dias para trabalhar em um bordel de luxo. Lá, adquirem nova identidade: são Athéna, Circé e Héra. Há uma cisão entre essa mudança de identidade e a fronteira surge como uma ruptura entre os dois mundos. Axelle, mãe de três filhos, vive em um conjunto habitacional com a mãe. Vítima de violência doméstica, deve lidar com o retorno do marido, que descobre sua localização. Dominique, uma mulher de meia-idade, sustenta a casa e vive com problemas de relacionamento com os filhos. Já Conso, uma jovem negra de origem senegalesa, se nega a ocupar o espaço social designado previamente a ela, ousando ter delírios de ascensão social via casamento. O relacionamento das três vai sendo construído sem pressa, se valendo do atributo de uma narrativa fragmentada que sempre reconta a história sob a perspectiva da personagem. Há uma forte tensão entre elas, que chega ao limite físico de tapas e puxões de cabelo. Mas o que pode ser visto em um primeiro momento como uma competitividade tóxica entre mulheres, impulsionado pela estrutura machista e privações das mais diversas, se desfaz em uma segunda camada na qual os laços de afeto se enrijecem, surgindo qualquer coisa para além da sororidade.

(© My French Film Festival / Divulgação)

Cada mulher lida com um acontecimento grave que mobiliza a trama. O retorno do marido violento de Axelle e o receio de, com isso, perder a guarda dos filhos, assume curvas trágicas. O medo de que a filha adolescente seja vítima de violência sexual em um ambiente corrompido pela pobreza e pela cultura do estupro faz com que Dominique ande armada. Mas é Conso que personifica como o fluxo de realidade pode acabar com sonhos. Acreditando ter encontrado o seu “príncipe loiro”, a moça descobre, em uma das cenas mais fortes do filme, todo o chorume colonial, racista e socialmente preconceituoso. Quando a teia que une essas mulheres é formada, o que parece ser o objetivo primevo da narrativa, a potência do comentário da obra pode ser vislumbrado. Anne Paulicevich confidencia na entrevista para o Festival que seu objetivo ao escrever o roteiro era falar do heroísmo feminino cotidiano. Buscou essas histórias reais de mães da classe trabalhadora que cuidam dos filhos de dia e se prostituem à noite. Mas acabou entregando uma fórmula atual de solidariedade feminina forçada pelo entorno violento e massacrante.   

A fotografia, de Juliette Van Dormael, é uma peça intimista que opta por enquadramentos tímidos, que preferem esconder mais do que mostrar, seguindo um percurso de lapso temporal. Há momentos em que a imagem é embaçada, desfocada, ampliando ainda mais a distância das mulheres com o público. Esse movimento de tornar-se íntimo lentamente das personagens segue a cadência do próprio roteiro que, ao trabalhar com múltiplas perspectivas, não entrega nada de pronto. A distância reflexiva e a economia de enquadramentos poderia funcionar com uma montagem mais sensorial, que acompanhasse o fluir dos corpos. Mas a montagem acaba sendo iminentemente reveladora, se permitindo “perder tempo” dentro dos planos, e o que parece ser o objetivo da fotografia por vezes não se concretiza. Esse desencontro pesa um pouco para a história que Frédéric Fonteyne e Paulicevich querem contar.

“Donas da Alegria” tem um título irônico, e tenta passar quase desapercebido pelo mar de produções que buscam problematizar a vulnerabilidade social pela qual as mulheres sofrem e toda a violência que dela derrama. Mas acaba funcionado como um conto moderno de amizade, imposta à força, mas não menos verdadeira. Ganha pontos por não se perder em um discurso explicativo e justificativo, se tornando uma cartilha. Ao humanizar suas personagens, que às vezes surgem com declarações machistas e racistas, opta por um caminho menos óbvio. Mas cria camadas e entretém com doçura.

* Filme assistido durante a 11ª edição do My French Film Festival.