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“DRUK: MAIS UMA RODADA” – A solução para a angústia [44 MICSP]

De acordo com Sören Kierkegaard, enquanto a essência é própria do animal, o indivíduo é marcado pela existência, pautada, por sua vez, pela possibilidade. No âmbito da possibilidade, tudo é possível, o que gera a condição fundamental da existência humana, que é a angústia. A angústia é um sentimento voltado ao futuro, refere-se a tudo que pode acontecer – e que pode ser pior que a realidade (presente). Para o filósofo, a possibilidade coloca o indivíduo face a três modos de vida possíveis: estético (hedonista por excelência), ético (honesto e familiar) e religioso (voltado à religião). Na ótica de Kierkegaard, Martin, protagonista de DRUK: MAIS UMA RODADA (ou ANOTHER ROUND), teria solucionado a angústia ao regredir do modo de vida ético para o estético.

Martin tem uma vida que muitos ao seu redor consideram excessivamente séria. No casamento, sua esposa reconhece que ele já não é mais o mesmo que ela conheceu. No trabalho, os alunos consideram suas aulas tediosas. No aniversário de quarenta anos de seu amigo Nikolaj, ele começa a cogitar o uso de álcool para descontrair. O que se inicia como um alívio momentâneo se desenvolve como estudo empírico para uma vida mais tranquila e feliz.

(© Zentropa Entertainments / Divulgação)

Martin é uma personagem fascinante. Certamente a interpretação formidável de Mads Mikkelsen colabora para enriquecer o papel, já que o ator estabelece uma progressão clara em relação ao que Martin vive em seu arco dramático. A construção da personagem, no roteiro de Thomas Vinterberg (que dirige o longa) e Tobias Lindholm, é de uma riqueza notória. O protagonista é um professor de História – o que já indica alguém que olha mais para o passado do que para o futuro – cujas aulas são desinteressantes para os alunos e que “não é mais quem” a esposa conheceu. Ignorado pelos próprios filhos, a angústia kierkegaariana sentida por Martin reside justamente no que ele pode fazer, dentro das inúmeras possibilidades, para solucionar o estado desconfortável em que vive.

O álcool surge como solução. Antes, ele é o pai de família honesto, fiel e centrado, vivendo o modo de vida ético. Porém, o modo de vida estético, em que o prazer se torna central, é sedutor na medida em que pode fazer com que o protagonista seja melhor visto por todos. A juventude quer fazer o mínimo tendo o máximo de diversão, então que assim seja com quem os orienta (ou seja, os professores, Martin e seus amigos). “Another round” aproveita um pouco da comicidade do comportamento das pessoas sob efeito de álcool, através da fala e da linguagem corporal, sem abusar do que fatalmente se torna degradante. A pessoa ébria pode ser engraçada em determinado estágio, mas o salto para o indigno não é longo. A parte engraçada é mostrada com as personagens, mas também com figuras políticas famosas, que aparecem ingerindo álcool ou sob efeito, hipótese em que a indignidade é ainda menos distante.

O efeito do álcool é abordado no filme do ponto de vista comportamental e não psicológica. As personagens passam alguns vexames perante desconhecidos, conhecidos e familiares, mas suas sensações individuais são ignoradas. O único aspecto em que a subjetividade é exteriorizada no filme é na fotografia, que filma muitos planos na contraluz, transmitindo a sensação de iluminação exagerada típica de uma pessoa sob efeito de álcool. A ideia é coerente porque o objetivo de Martin é ser enxergado de forma diferente por todos, ou seja, sua preocupação é mais externa do que interna. Ele se torna um novo professor – um que os alunos gostam, cujas aulas são divertidas – e um novo marido – um do qual a esposa sentia saudade -, porém a linha para a artificialidade é tênue. Aquele não é o verdadeiro Martin.

No prólogo e no epílogo estão as sequências mais chamativas, por irreverência, exagero e dinamismo, de “Another round”. O prólogo é de adrenalina; o epílogo, de alívio. A despeito do assunto sério abordado pelo longa, existe um humor agradável que permeia a trama, ora por piadas óbvias (a água que Tommy nega para o aluno), ora pela situação cômica (a seriedade com que o grupo leva a “hipótese científica” adiante). A experiência acaba sendo vívida como a Leitmotiv (“What a life”, de Scarlet Pleasure), evitando-se um drama cansativo e trágico. Como a vida, que pode ter momentos de drama, mas também momentos de humor. No outro choque, aquele entre gerações, o jovem não precisa ter o modo de vida estético e o maduro não precisa ter o modo de vida ético. A angústia relativa às possibilidades admite outras soluções.

* Filme assistido durante a cobertura da 44ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.