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“DUAS RAINHAS” – Uma melhor que duas

Depois de “Rope” (“Corda”, em tradução livre) virar “Festim diabólico”, nenhum nome brasileiro surpreende. No caso de DUAS RAINHAS, o título nacional é tão equivocado que é capaz de induzir o espectador em erro. Melhor “Mary Queen of scots” (em tradução livre, “Mary Rainha dos escoceses”), pois o filme se importa apenas com uma das rainhas, Mary.

O longa começa com o retorno de Mary para a Escócia após o falecimento de seu marido francês. Seu retorno representa risco para sua prima Elizabeth I, Rainha da Inglaterra. A tensão aumenta com a expectativa de que alguma delas tenha um sucessor.

Como filme de época, a expectativa em relação ao trabalho da diretora Josie Rourke se refere ao visual. O figurino assinado por Alexandra Byrne e o design de produção comandado por James Merifield não decepcionam: no primeiro caso, os vestidos polpudos traduzem a importância real da dupla principal – é de se notar que apenas elas usam roupas coloridas (os homens, apenas preto, ficando opacos face a elas) -; no segundo, a exploração de duas cores, vermelho e amarelo, reproduz o simbolismo da película – uma mescla entre paixão e poder.

Cartaz de “Duas rainhas

A maquiagem envolveu diversos profissionais e impressiona em relação a Elizabeth (principalmente em razão de uma doença que ela adquire e que afeta sua pele), porém deixa a desejar quanto ao envelhecimento das personagens (em especial considerando o lapso abordado). Os penteados, todavia, são impecáveis. No ritmo, Rourke torna a película um pouco arrastada e repetitiva – poderia ter dispensado cenas como as das empregadas escutando as conversas. A mise en scène é razoável, salvo no clímax, que tem uma montagem e uma geografia de cena simplesmente pavorosas (a criação de uma cena refutada por historiadores não tem relevância artística, já que não se trata de um documentário).

Para quem conhece os fatos retratados – seja por conhecimento da História, seja através da duologia protagonizada por Cate Blanchett (que é muito superior, em todos os quesitos, à versão de 2018) -, o melhor atributo do roteiro de Beau Willimon (baseado no livro de John Guy) é a compreensão fidedigna do Zeitgeist. O texto é formado a partir de três pilares, todos eles tendo o poder como centro, levando à conclusão de que este é cercado por pessoas que são indiferentes a derramamento de sangue. O primeiro pilar é religioso: Mary se torna inimiga dos protestantes por ser católica, sendo criticada por “se ajoelhar perante o Papa”. As consequências são políticas, pois os líderes protestantes usam o discurso de recusa a receber “ordens de Roma”. O segundo pilar não deixa de ser desdobramento do primeiro: a desconfiança de Mary é resultado pela rixa religiosa, todavia sua condição de mulher, sem surpresa, é motivo para um certo descrédito na seara política. Ponto fraco do roteiro, o terceiro pilar reside no viés romântico que permeia a narrativa, com uma ênfase desnecessária aos amores de Mary e Elizabeth.

Saoirse Ronan interpreta de maneira excelente Mary Stuart: a despeito de sua expressão juvenil (que combina com papéis como o de “Brooklyn”), a atriz convence como uma mulher de personalidade forte, disposta a enfrentar quaisquer obstáculos para atingir seus objetivos e com uma língua bastante afiada. Isso não significa, contudo, que Mary seja fria – basta ver o trato com seu amigo Rizzio. Merece destaque o empenho da intérprete, que é irlandesa, em simular um sotaque escocês e, ainda, por eventualmente falar em francês (já que ela foi Rainha Consorte da França).

No papel de Elizabeth I, Margot Robbie não alcança o mesmo nível. O sotaque inglês, por exemplo, é aquém do desejável. A comparação com Blanchett é óbvia, porém injusta: em “Elizabeth” e “Elizabeth: a Era de Ouro”, a “Rainha Virgem” era protagonista e centro das atenções, já em “Duas rainhas”, a despeito do já mencionado errôneo nome brasileiro, é Mary quem tem os holofotes. Trata-se de uma opção consciente do roteiro que talvez a direção não tenha conseguido entender bem: Elizabeth I é personagem secundária na trama, tornando-se flagrantemente acessória na narrativa a ponto de ser praticamente descartável (bastaria talvez menções indiretas – e não tempo direto na tela). O perfil de maior insegurança e menor paranoia ajuda a engrandecer Mary, mas torna questionável a sua importância histórica. Alienada, ela fica à margem do que é tramado na Escócia (traições e armadilhas), demonstrando um desconhecimento pouco crível.

Considerando o melhor trabalho de Ronan (quando comparada a Robbie) e o retrato mais bem delineado de Mary (tanto do ponto de vista da personalidade quanto do arco dramático), a exclusão cênica de Elizabeth I teria sido benéfica ao resultado final – que, todavia, está longe de ser ruim. A predominância do poderio feminino é um valor positivo em si mesmo, contudo “Duas rainhas”, enquanto filme, falha um pouco no desenvolvimento da narrativa e não supera outros dramas históricos nos quesitos estéticos. Uma rainha talvez tivesse sido melhor do que duas.