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“EGON SCHIELE – MORTE E A DONZELA” – Talvez não precisasse ser mais arrojado

A ousadia do biografado nem sempre é transmitida na biografia, que não raras vezes prefere atenuar esse aspecto. Exemplo disso é EGON SCHIELE – MORTE E A DONZELA. O longa acompanha a fase mais fértil do artista, na década de 1910, momento em que Schiele seduzia mulheres e conquistava, aos poucos, o seu espaço como artista. Entre musas e dificuldades financeiras, sua vida foi marcada por enfrentamento da parcela conservadora da sociedade e uma devoção admirável pela arte.

A personalidade do protagonista é transparente na película, bastante eficaz nesse quesito. Schiele não se importa com o julgamento social, não enxerga as suas obras como pornográficas – mas sim artisticamente eróticas – e não vê malícia na nudez artística que promove. Retratar a irmã mais nova nua ou não ter biombos em seu estúdio fazem parte da sua ingenuidade mundana. Isso não apaga, porém, a sexualidade crescente no jovem impudico e corajoso. Para ele, “uma obra de arte não tem preço”, até porque “dinheiro é só um pedaço de papel”. Maior que a dor do corpo, decorrente de uma privação da liberdade, é a dor da alma, resultante da destruição de suas obras. Ironicamente, seus quadros, à época tachados como “repugnantes”, hoje valem milhões, muito embora sejam despudoradas em demasia para alguns ainda hoje.

Schiele é um artista extremamente dedicado, que não se furta a trabalhar no que sabe e gosta, mas enxerga o desperdício oriundo da sua participação na Primeira Guerra – do seu ponto de vista, mesmo sem uniforme, ele serve à pátria. Noah Saavedra é excelente interpretando o protagonista, transmitindo o foco constante, sem deixar de lado a alegria jovem da personagem, aspectos que fazem parte de seu perfil sedutor (o jovem parece promissor). O roteiro, contudo, passa a impressão de que ele nunca atinge todo o seu potencial: a despeito do visível progresso na carreira – por exemplo, ao invés de pedir para modelos posarem, as mulheres se declaram para ter esse privilégio -, é preso quando começa a ganhar reconhecimento e sua carreira não é longeva (são fatos históricos, não spoilers).

O texto se esmera em construir uma personagem empenhada, porém olvida ou subutiliza eventos presumivelmente importantes, como a ausência dos pais, a expulsão da Academia de Artes de Viena e a troca de experiências com o mentor Gustav Klimt. São exemplos de passagens equivocadamente efêmeras, quando não subentendidas. A construção do plot também erra ao perder tempo com duas linhas narrativas que se passam em velocidade distinta, em tese, para enriquecer a trama: a primeira se inicia em 1910 e segue até o final, dominando o tempo de tela para expor muitos anos; a outra é seu último ano de vida, com acontecimentos mais morosos. Além de eliminar um possível suspense, a divisão não é benéfica ao roteiro.

O protagonista parece enxergar a arte em uma bolha com autorização para transgredir. Isso explica a maneira pela qual ele trata Gerti, sua irmã: desenhá-la nua não é um problema, ela apenas não pode ficar nua perante outros homens, ainda que queira. É boa a atuação de Maresi Riegner como Gerti, encarnando, de um lado, o amor imensurável (e, de certa forma, uma admiração) por Egon, bem como, de outro, o inconformismo pela injustiça que ele promovia. Eram tempos de machismo – o que justifica a cobrança mais cara por modelos masculinos -, o que não a impedia de questioná-lo do tratamento desigual ao proibi-la de se relacionar com um homem. Schiele, diversamente, encontra a liberdade para ter prazer com suas modelos – uma delas, por exemplo, é dotada do que ele chama de “poder libidinoso”. Um traço comum entre as moças é o intenso ciúme nutrido pelo protagonista, algo tão intenso que, de certo modo, move a trama.

Nesse sentido, as mulheres que se aproximam se afeiçoam facilmente por Schiele, sem entender que o amor de sua vida era a arte – e nada mais. Wally, vivida intensamente por Valerie Pachner, é uma das vítimas da sedução ficta do artista – algo aparentemente comum, pois o modus operandi de Klimt é o mesmo.

Dieter Berner assina o roteiro e a direção da película, acertando em especial ao demonstrar o contexto através do qual surgiram as obras de Schiele. Destaca-se no longa a ótima direção de arte, que explora cores frias (principalmente azul, castanho, verde e cinza), combinando com a fotografia também gélida e os figurinos fidedignos. A maquiagem, por outro lado, é exagerada e artificial, deixando o protagonista, por vezes, com aparência sintética. A trilha musical de André Dziezuk é maravilhosa: por exemplo, “Snowball fight” substitui um violino melancólico na primeira estrofe por um piano menos sentimental na segunda; “Wally’s letter” tem uma melodia similar, mais em ritmo muito mais lento, emanando um lamento desolador. É uma pena que as músicas sejam tão curtas.

Berner não é um diretor inventivo, perdendo a oportunidade de seguir a rebeldia do protagonista e criar uma arte subversiva. Mesmo existindo nudez (inclusive frontal e masculina), o que se extrai dela é não muito mais que um contexto narrativamente justificado e uma exposição do padrão de beleza da época (nem sempre próximo das modelos magérrimas de hoje). No entanto, considerando que alguns espectadores sentem desconforto até mesmo com a nudez artística, talvez não precisasse ser mais arrojado.