Nosso Cinema

A melhor fonte de críticas de cinema

“ELA DISSE” – Narrar o trauma

Em 2006, o termo #MeToo foi cunhado pela ativista pelos direitos civis Tarana Burke. Onze anos depois, a atriz Alyssa Milano tweetou uma mensagem que incentivava outras mulheres a denunciarem crimes sexuais no ambiente de trabalho. Outras celebridades se seguiram na mesma atitude, fazendo a visibilidade crescer. A partir das mídias sociais, desenvolvia-se o movimento #MeToo com o objetivo de expor casos de abusos ou assédios sexuais em empresas e de obter melhores condições de trabalho, inclusive com debates sobre diferenças salariais. No centro da questão, os crimes do ex-produtor de cinema Harvey Weinstein ganharam grande repercussão e se tornaram base para o filme ELA DISSE.

(© Universal Pictures / Divulgação)

Inspirando-se nas reportagens de Megan Twohey e Jodi Kantor pelo New York Times e no livro “Ela disse: Os bastidores da reportagem que impulsionou o #MeToo“, a obra segue duas profissionais que narram a história que, na visão de muitos, impulsionou o #MeToo. Jodi Kantor recebe a denúncia de que a atriz Rose McGowan foi abusada sexualmente pelo produtor Harvey Weinstein da Miramax. Como Rose se recusa a dar declarações oficiais, a jornalista vai mais a fundo em uma investigação que mostra a existência de dezenas de mulheres que também foram vítimas do mesmo homem. Frustrada com as primeiras dificuldades do trabalho, ela chama Megan Twohey para ajudá-la em uma reportagem que quebraria décadas de silêncio sobre agressões sexuais em Hollywood.

Na narrativa concebida pela diretora Maria Schrader, as semelhanças com “Todos os homens do presidente” e “Spotlight: Segredos revelados” são evidentes. Ao longo de pouco mais de duas horas de projeção, as protagonistas procuram atrizes e funcionárias da Miramax assediadas, tentam convencê-las a falarem publicamente, reúnem materiais para a publicação no jornal, trocam informações e estratégias com seus editores, desenterram cumplicidades de indivíduos ou grupos e trabalham para a escrita final da matéria. Nesse sentido, o componente investigativo é um ponto em comum entre os três filmes, ainda que “Ela disse” também se interesse pela dimensão pessoal das personagens principais. Carey Mulligan vive Megan Twohey como uma jovem mãe que acaba de ter o primeiro filho e lida com os desafios da maternidade, enquanto Zoe Kazan interpreta Jodi Kantor como uma mãe de duas filhas que se esforça para preservar a inocência das crianças diante de notícias tão sofridas. Por um lado, é interessante dar uma abordagem mais concreta a elas, que mostre arcos dramáticos íntimos fora de sua profissão. Por outro, esta dimensão não se desdobra tanto para além da premissa e os conflitos de Jodi se tornam mais complexos e presentes que os da colega.

Com o decorrer da investigação, uma questão crucial se impõe: como narrar experiências dolorosas e traumáticas sem banalizá-las ou espetacularizá-las? Uma maneira de tratar o desafio encontrada pela diretora e pela roteirista Rebecca Lenkiewicz é valorizar os relatos pelo que são, ou seja, as chances de quebrar o silêncio imposto socialmente e de reconhecer as emoções de mulheres violentadas. Em termos narrativos, as sequências podem parecer repetitivas, envolvendo chamadas telefônicas, encontros presenciais, relutância para declarações oficiais e compartilhamento de vivências aflitivas. Porém, a força dramática desses momentos é incontestável ao demonstrar que tantas vítimas diferentes em contextos específicos se encontram na convergência de violências recorrentes, entre as quais Harvey Weinstein forçava atrizes e funcionárias da Miramax a massageá-lo e vê-lo nu, exigia favores sexuais em troca de oportunidades profissionais e estuprava-as. As caracterizações das protagonistas também são valiosas, pois Carey Mulligan e Zoe Kazan fazem as jornalistas se envolverem emocionalmente com os casos e se importarem com as emoções das mulheres a ponto de compreenderem quem decide não falar.

O modo como os resultados da investigação começam a aparecer também evidenciam um cuidado com a história a ser contada. O filme trabalha a questão das fontes para o jornalismo dando atenção especial aos procedimentos que contemplam o acesso à informação e sua posterior divulgação com as certezas de veracidade e de proteção aos informantes. Em tempo de disseminação de desinformação e notícias falsas, é particularmente importante ressaltar a responsabilidade da dupla de profissionais de publicar seu material apenas com documentos comprobatórios e declarações oficiais. Esta preocupação se choca com a fala de um executivo da Miramax que insinua friamente que as denúncias seriam, na realidade, fruto de tentativas das atrizes de subirem na carreira. Além disso, os trabalhos de Megan e Jodi escancaram a rede ampla de violência e cumplicidade que fazia Harvey Weinstein acumular abusos sexuais e passar impune, o que incluía fazer acordos de confidencialidade com as vítimas para comprar silêncios, contar com o apoio de funcionários da empresa para encobrir os assédios, aproveitar a complacência de Hollywood e utilizar a grande imprensa para descredibilizar as denúncias.

Não deixa de ser igualmente interessante a construção estética de alguns relatos para dar conta do problema de narrar o inenarrável. Em determinado instante, a gravação de áudio de uma conversa entre Harvey Weinstein e uma funcionária é inserida em um plano fixo de um corredor do hotel, prédio onde os abusos aconteceram. Em outra passagem, uma narração em voice over de outra funcionária é acompanhada por planos detalhes de objetos no interior de um quarto de hotel. Estas construções visuais ajudam duplamente Maria Schrader a representar os depoimentos sem extrair emoções apelativas do público e a encenar as situações de forma sofisticada, já que simular os crimes sexuais poderia ser problemático. Ao invés disso, projetar na imaginação cada abuso praticado a partir dos cenários e dos objetos cênicos cria um efeito assustador. Por mais que críticas possam ser feitas a uma decupagem simples na maior parte da narrativa, a cineasta propõe algumas escolhas estilísticas interessantes para além das já citadas que também evidenciam a preponderância das mulheres e de suas falas. São os casos, por exemplo, de planos abertos pelas ruas de Nova York que priorizam figurantes mulheres e o fechamento do plano no rosto de Megan durante uma reunião com representantes de Harvey.

Apesar de a narrativa se concentrar no produtor da Miramax, o roteiro também estabelece que este não é o único caso de assediador na sociedade norte-americana contemporânea. Assim, a perspectiva assume um viés mais amplo que contempla outras acusações para figuras poderosas de outros ramos. Na abertura, Megan aparece trabalhando com denúncias de violência sexual contra o então candidato à presidência Donald Trump; mais adiante, Jodi é felicitada pelos colegas por ter trabalhado nas investigações de crimes sexuais do apresentador de televisão Bill O’Reilly que culminaram em seu afastamento da Fox News. No entanto, a contextualização maior sofre alguns percalços ao contar com a inserção de cenas deslocadas do tom geral, que se fazem presentes simplesmente para tentar dar uma atmosfera mais ameaçadora. Como resultado, a sequência em que as jornalistas são assediadas em um bar e em que Jodi parece ser seguida por um veículo à noite apelam para saídas fáceis demais e clichês para algo que já estava evidente ao longo das investigações.

Dentro do processo artístico de narrar o trauma, “Ela disse” precisa lidar com as representações de figuras reais de tudo que as cerca quanto às violências sexuais em Hollywood. Algumas delas recebem um tratamento ética e artisticamente interessante, como a atriz Ashley Judd, que perdeu oportunidades de trabalho e teve a carreira enfraquecida, ter sua imagem recuperada ao viver ela mesma e dar voz à sua luta social. Outras personalidades são representadas de maneira problemática ou questionável, como Gwyneth Paltrow, alguém que o filme não sabe como trabalhar a imagem e que acaba gerando cenas duvidosas como a ligação telefônica para Jodi; e Harvey Weinsten, que gerava maior impacto ao ser apenas uma voz ouvida por chamadas telefônicas ou gravações e menos ao ter um ator a interpretá-lo e ser filmado sempre de costas. Consequentemente, o trabalho de levar para as telas casos tão recentes e dolorosos ainda cria certos problemas de execução embora a importância do enfrentamento da questão e algumas escolhas estéticas afirmem seu valor.